Vou usar a coluna deste mês para prestar uma homenagem ao arquiteto e urbanista David Cardeman, meu pai, que nos deixou recentemente. Compartilhar um pouco da trajetória dele é também uma forma de encontrar consolo — e, quem sabe, de receber o carinho e apoio dos leitores neste momento tão difícil.
Formado em 1960 pela Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil, atual UFRJ, David iniciou sua carreira desenvolvendo projetos para o mercado imobiliário, com forte atuação na área de “arquitetura legal”. Por 31 anos, dedicou-se a esse campo, encerrando esse ciclo em 1991 com seu último projeto arquitetônico — justamente aquele que marcou o início da minha própria trajetória profissional. Foi o único projeto que assinamos juntos, o que o torna ainda mais especial para mim.
Na década de 1970, realizou o que considerava seu maior projeto de arquitetura: a construção do Autódromo de Jacarepaguá — tema, aliás, de seu último livro, “Autódromo do Rio de Janeiro: Construção de um sonho”, publicado em 2025.
Mas foi no urbanismo que ele realmente se encontrou. Tinha um amor profundo pela cidade do Rio de Janeiro, e nas décadas de 1970 e 1980 se tornou referência na elaboração de decretos e leis urbanísticas. Muitas vezes, saía a campo para fazer levantamentos in loco, buscando fundamentos técnicos para propor alterações de parâmetros ou zoneamentos. Em algumas dessas ocasiões, tive a chance de acompanhá-lo. Foi ali que nasceu a minha paixão pela cidade — embora, na época, eu não imaginasse que um dia seguiria os mesmos passos.
Eu sempre dizia que não queria seguir a trajetória dele. Mas olhando para trás, vejo que segui sim — e com orgulho. Hoje percebo que faço as mesmas coisas que ele fazia, e amo isso.
Curiosamente, muitas das legislações que eu utilizava para desenvolver meus próprios projetos tinham sido redigidas por ele. Isso me permitia fazer perguntas, entender os detalhes, o propósito de cada norma — e, com isso, fui aprofundando meu conhecimento em legislação urbanística e desenvolvendo um verdadeiro gosto por analisar seus reflexos na paisagem da cidade.
Como alguns devem saber, esse interesse compartilhado acabou se transformando, em 2004, no nosso primeiro livro juntos: “O Rio de Janeiro nas alturas”. Na época, eu mais assistia do que escrevia — ficava admirando aquele vasto conhecimento, absorvendo tudo o que podia. Foi uma experiência marcante.
Depois, tivemos a oportunidade de lançar mais um livro em parceria. A partir de crônicas que vínhamos escrevendo ao longo dos anos, resolvemos reunir os textos em uma coletânea, que resultou, em 2020, na publicação de “Rio Legal: ensaios sobre uma cidade em movimento”.
Já aposentado, meu pai seguia sendo uma pessoa profundamente curiosa sobre o que acontecia no campo do urbanismo. Participava com entusiasmo das reuniões dos apoiadores do Caos Planejado e sempre tinha boas histórias para contar — fosse sobre os bastidores de uma legislação, uma solução criativa para um problema urbano ou simplesmente uma lembrança divertida de campo.
David fez contribuições valiosas em diferentes frentes: na arquitetura, no urbanismo, e também no trabalho comunitário. Seu legado vai muito além dos livros, projetos e leis — está também nas ideias que deixou, nas pessoas que inspirou e no amor que tinha pela cidade.
É claro que parei para chorar algumas vezes enquanto escrevia este texto. Mas não poderia deixar de registrar aqui essa homenagem, essa memória, esse agradecimento.
Que o Brasil forme mais profissionais como ele. Que possamos, com sensibilidade e compromisso, melhorar nossas cidades.
Obrigado, David.
Obrigado, pai.