Um bom exemplo pode vir de qualquer tempo e lugar

21 de junho de 2024

Não parece útil – ou científico – descartar repertório por preconceito

Em Ratatouille, o crítico gastronômico Anton Ego escreve uma resenha que é, na minha opinião, o ponto alto dessa animação imperdível. Choro toda vez, especialmente quando ele diz que “nem todo mundo pode se tornar um grande artista, mas um grande artista pode vir de qualquer lugar”.

Gostaria de expandir essa última frase para a arquitetura (daria para expandir para a vida, mas quem sou eu, né? Fico no que conheço, minimamente).

Na arquitetura é preciso criar, e é impossível criar sem repertório. Simples assim. É preciso dar soluções para problemas reais das pessoas. Como os problemas reais se repetem no mundo todo – porque as pessoas estão em todo o mundo e têm muitíssimos traços em comum – são grandes as chances de que alguém, em algum lugar, em algum tempo, tenha pensado numa solução para o problema que a gente tem, hoje, nas mãos. Ou pelo menos tenha resolvido parte dele. Ou resolvido algo não exatamente igual, mas correlato. Ou criado algo que não tem nada a ver com o nosso problema, mas que permite uma extrapolação e vale o teste. Ou que tenha feito algo péssimo, que a gente precisa conhecer para não repetir.

Quanto maior e mais variado nosso repertório, melhor criamos. Precisamos de exemplos. Bons e maus, esse julgamento cabendo ao crivo ético, ecológico e estético das cidades justas, resilientes e belas de que precisamos.

Costumo dizer aos estudantes que não me importa a origem dos exemplos. Isso significa que, se em algum lugar da Europa tem uma boa solução de desenho urbano, eu vou estudá-la para ver se cabe utilizar como referência para nós, aqui, no Brasil. Não acho produtivo, para a construção do conhecimento, descartar os exemplos que nos fornece o velho continente só porque vêm de lá ou porque isso seria eurocentrismo. Não será eurocentrismo se também buscarmos exemplos em nosso país, nos países vizinhos, na Oceania, em Wakanda. Ainda bem que o Google Earth está aí para isso, e não precisamos ficar à mercê dos algoritmos. Ainda bem que a ficção está aí para nos ajudar a refletir.

Obviamente, a Europa não é o centro do mundo, mas já viveu muito, é velha. Já fez muita coisa legal e muita coisa errada – que seria desejável que conhecêssemos para (quem sabe?) pular etapas e fazer melhor. Não é possível que não tenha nada a nos ensinar.

Claro que não é só ela que é velha. Peru, Paquistão, Egito, Líbano, China e muitos outros países abrigam cidades fundadas antes de Cristo, cheias de exemplos para inspirar nossas jovens cidades de menos de 500 anos, as quais também são fonte de repertório.

Carl Sagan, no livro O mundo assombrado pelos demônios, nos previne quanto a 20 possíveis formas de sermos desviados da busca pela verdade científica. A primeira da lista é a expressão ad hominem. Em suas palavras: “quando atacamos o argumentador, e não o argumento”. Eu não sei latim, mas gostaria de adicionar à lista, no que diz respeito à arquitetura e à necessidade de que ela progrida por meio do conhecimento científico, as expressões ad locum e ad tempus.

A primeira – ad locum – para designar quando atacamos a localização do exemplo, e não o exemplo em si. Ou seja, quando desconsideramos uma solução só porque ela vem de tal lugar, e não porque ela é realmente inadequada para o problema em tela, descontextualizada cultural, climática ou socialmente.

A segunda – ad tempus – para designar quando atacamos a época em que o exemplo foi criado, não o exemplo em si. Ou seja, quando descartamos de saída uma solução só porque ela foi dada centenas de anos antes. Como Jacobs & Appleyard nos ensinam em Toward an Urban Design Manifesto: “O desenho urbano tem muitas vezes assumido que o novo é melhor que o antigo. Mas o novo só se justifica se for melhor do que o que existe.”

O ser humano e as comunidades são valiosos demais pra gente deixar o preconceito nos cegar, com tanto conhecimento acumulado por aí, com tantas camadas de desenho, história e memória nas cidades do mundo disponíveis para estudo e interpretação. Precisamos ampliar, e não restringir, nosso repertório.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Arquiteta, professora da área de urbanismo da FAU/UnB. Adora levantamento de campo, espaços públicos e ver gente na rua. Mora em Brasília. ([email protected])
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