Zoneamento urbano é o sistema que se propõe a “organizar” o território. A ideia se tornou realidade em 2 de julho de 1885, em Modesto, Califórnia, com uma lei aparentemente inócua, declarando que seria ilegal operar uma lavanderia “exceto na parte da cidade que fica a oeste da linha férrea e ao sul da Rua G”. Na verdade, essa não é a primeira lei segregando usos, mas é, muito possivelmente, a primeira que promove segregação racial sob o “manto” do interesse público, utilizando “ferramentas” do zoneamento urbano.
Yoni Appelbaum relata em “Stuck: How the Privileged and the Propertied Broke the Engine of American Opportunity” como a liderança de Modesto decidiu estrangular economicamente e confinar uma comunidade.
Os cidadãos de Modesto e de outras cidades da Califórnia vinham tentando há anos livrar suas ruas de imigrantes chineses. Onde incêndios criminosos e violência haviam falhado, o zoneamento teria sucesso. “Ao confirmar a lei, o tribunal estava efetivamente defendendo o direito de uma cidade de segregar sua população. ‘Não vemos nada de irracional no governo’, decidiu a Suprema Corte da Califórnia, e manteve a lei”.
A Califórnia foi, como toda a fronteira norte-americana, populada por imigrantes e aventureiros ávidos por riqueza, mesmo que sobre ossadas nativas. Eram, em sua grande maioria, homens desacompanhados, e as tarefas domésticas acabavam tendo um custo proibitivo (as roupas eram lavadas em outras cidades e até em outros estados). Com a imigração maciça de chineses para a construção de ferrovias, em uma década o ramo de lavanderias virou uma espécie de domínio chinês. A princípio, o arranjo parecia agradar a todos, já que nas áreas urbanas os imigrantes chineses se agrupavam em enclaves étnicos.
Mas à medida que as lavanderias proliferavam e a concorrência aumentava, os negócios se expandiram para outros distritos: “assim como as cafeterias fazem hoje, as lavanderias acompanhavam seus clientes para fora dos distritos comerciais saturados e para os distritos residenciais. O problema era que os proprietários chineses geralmente moravam dentro das lojas. E à medida que se mudavam para áreas predominantemente brancas, o Estado Dourado fervilhava de intolerância anti chinesa.”
“Cidadãos brancos de Modesto, uma cidade cercada pelas ricas terras agrícolas do Vale Central da Califórnia, primeiro tentaram a violência de justiceiros para expulsar os moradores chineses. Em 1879, irritados com a ‘invasão de Chinatown’ em bairros residenciais, uma multidão se mobilizou ‘com disparos de pistolas e gritos de muitas vozes masculinas'(…). Em 1884, mais de cem homens em ‘trajes fantasmagóricos’, usando máscaras pretas e se autodenominando Reguladores do Vale de San Joaquin, invadiram Chinatown.” Onde a intimidação falhou, o zonamento funcionou, comprovando que nem tudo que é legal é honesto ou, como proclamado pelos romanos, “non omne quod licet honestum est”.
As regras de zoneamento urbano (que dominam a cena e continuam moldando as cidades brasileiras desde meados do século 20) são, junto com a redução do adensamento, os maiores responsáveis pelo espalhamento e degradação da vitalidade das cidades. Mas não apenas isso: são, antes de tudo, um modo legal de promover segregação nas cidades, inexoravelmente empurrando os menos afortunados para cada vez mais longe, cada vez com menos infraestrutura.
No final do dia, é toda uma população que terá menos oportunidades e menor a chance de participar da roda da prosperidade.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.