Tereza, a cidade junto ao rio

14 de novembro de 2023

Italo Calvino descreveu cidades de nomes femininos na obra “As cidades invisíveis”, mais de meio século atrás. O texto aborda as ocupações humanas como genitoras calorosas que aninham os seus habitantes. O referido autor também descreveu a cidade como um lugar de contradições. Esse lugar, enfim, é feito de caos. Esse mesmo lugar também é pleno em condições de acomodar beleza e humanidade.

Seguindo a lógica da escolha do território, em 1885, nasceu Tereza – depois Santa Tereza – fruto da decisão de imigrantes italianos por ocupar as margens do Rio Taquari. Depois deles, vieram os poloneses. Aparentava ser o local ideal para um porto fluvial: o último ponto navegável da bacia Taquari-Antas e a primeira ocupação na sequência do fluxo natural do rio, que se origina do encontro do Rio das Antas com o Rio Carreiro. O transporte de produtos e a ligação hidroviária com a região, além da conexão facilitada com a capital do Rio Grande do Sul foi o seu vetor de desenvolvimento. A conexão fluvial, favorecida no período de chuvas, permitiu o acesso deste pequeno assentamento a recursos que influenciaram sua economia e paisagem construída.

Santa Tereza assumiu, assim, importância estratégica na serra do Rio Grande do Sul e se tornou distrito de Bento Gonçalves em 1916. Houve grande progresso proporcionado pela proximidade com o rio, mas com a ascensão de outros modais de transporte, a cidade desacelerou o seu desenvolvimento econômico até a chegada da rede ferroviária na década de 1960. Com o amparo do novo cenário político e legal no Brasil [publicação da Constituição Federal de 1988 e início dos processos de emancipação de distritos] e, para proporcionar melhorias nas condições de infraestrutura para os seus habitantes, Santa Tereza se emancipa e torna-se um município em 1992.

As escolhas dos tempos iniciais, que formaram o assentamento de Santa Tereza, junto ao isolamento geográfico do período pós-fluvial foram a conjuntura para a manutenção da paisagem original. Assim, por seu traçado e conjunto de 25 edificações construídas entre o final do século XIX e início do século XX, recebeu em 2012 o tombamento pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). O tombamento considerou:

1. O traçado urbano quadricular preservado, típico do período das correntes imigratórias italianas no Rio Grande do Sul;

2. O acervo arquitetônico com edificações de influência neoclássica e eclética;

3. A paisagem rural e a riqueza do patrimônio cultural.

O traçado urbano consolidado até a década de 60 preservado e tombado pelo IPHAN incluiu desde o leito da ferrovia à estação ferroviária, uma porção do leito do rio Taquari e do leito do arroio Marrecão, além de seus lotes adjacentes. O tombamento da área do entorno busca manter a relação entre o sítio histórico e a paisagem natural.

Santa Tereza é uma cidade que se acomodou de maneira elegante entre as águas e as montanhas. Essa relação com a água, crucial para a sua origem e imagem como assentamento, representa hoje um dos maiores desafios à sua permanência e preservação. A cidade lida, desde a sua fundação, com a elevação do nível do rio e do arroio. Nos anos de 2001, 2020 e 2023 ocorreram cheias que marcaram a memória da região. A última, em setembro de 2023, foi a mais recente (e a maior) registrada na cidade. Além disso, a que causou maior impacto e ameaçou a paisagem tombada pelo IPHAN. Cada cheia marca não apenas o lugar, mas a memória de seus habitantes.

A paisagem é alterada, o presente se transforma em passado em instantes.

A cidade e sua comunidade nunca voltam a ser as mesmas: como o rio que também sofre alterações no seu curso natural. Há resiliência do lugar e da sua humanidade.

Calvino revelou semelhanças entre as cidades por ele descritas, nelas também se reconhece traços de Santa Tereza. A vulnerabilidade perante os eventos naturais será a realidade da maior parte dos assentamentos humanos daqui para frente, assim como é para Santa Tereza. Mesmo que a elevação do nível do rio seja uma condição original desse pequeno município, há alguns anos a vazão das cheias têm aumentado no sul do Brasil. A emergência das mudanças climáticas aponta para um crescimento na frequência e intensidade das cheias.

Se o rio foi a razão do “nascimento” de Tereza e se ele influenciou na manutenção das suas características originais e fez dela um patrimônio reconhecido nacionalmente, a que futuro esse mesmo rio pode conduzir essa cidade?

Referências:

PREZZI, C. A. Santa Tereza: patrimônio histórico, artístico e nacional. In: BACCA, A. A.;

ROCHA, L. H. 150 anos imigração italiana no Rio Grande do Sul. 1 ed. Bento Gonçalves: Proyecto Cultural Sur/Brasil, 2020. 1140 p.

BRASIL. Portaria n143, de 30 de dezembro de 2011. Homologa o tombamento do Núcleo Urbano de Santa Tereza, no Município de Santa Tereza, Estado do Rio Grande do Sul. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 2 – 3, 02 jan. 2012.

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. Santa Tereza (RS).

IPH/UFRGS — Nota sobre a cheia ocorrida nos dias 4 e 5 de setembro na Bacia do rio Taquari-Antas.

Coluna de autoria de Érica Dall’Asta e Ellen Renata Bernardi.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

Compartilhar:

VER MAIS COLUNAS