A gente precisa desenhar lugares que ajudem a fazer com que as decisões individuais das pessoas sejam aquelas de que a cidade, a coletividade e o planeta precisam.
Numa das entrevistas que fiz para a minha tese, uma moradora da 112 Sul, ao ser perguntada como se deslocava até o Setor Comercial Sul, respondeu: “Vou de metrô, porque lá nunca tem vaga”. De fato, em que pese o local ser rodeado de bolsões de estacionamento gratuito até hoje, no horário comercial estão todos lotados.
Ela tinha carro. Ela ia a todo lugar de carro, mesmo tendo uma estação de metrô próxima, mesmo sendo perto caminhar até a W3 e pegar um ônibus para qualquer lugar do DF. Mas… especificamente para o Setor Comercial Sul, ela ia de metrô. Ela já antevia a chatice que seria ficar rodando procurando vaga, perdendo tempo, tendo talvez que acionar um flanelinha.
Se ela fosse de carro e resolvesse parar em fila dupla, situação em que teria que dar algum dinheiro para o flanelinha, esse gasto e o custo da gasolina seriam quase equivalentes ao custo da passagem de metrô. Se ela resolvesse parar no estacionamento pago de um shopping próximo, aí o custo seria bem maior. Se ela fosse de táxi, seria mais caro ainda (não havia Uber em 2010).
Indo de carro ou de metrô, o tempo de deslocamento seria também equivalente, mas, de carro, ela teria que ficar procurando vagas indefinidamente, se não quisesse parar de forma irregular.
Ela tomou a decisão de pegar um transporte público. Uma decisão consciente, baseada apenas em seus interesses individuais. Ela pesou o fator custo, o fator tempo e – com certeza – o fator amolação (que não dá pra medir, mas a gente adivinha) e usou um modo de deslocamento que ela tem o privilégio de ter na porta da sua casa, mas que ela usa só quando ele é mais prático, mais barato ou mais rápido que usar seu carro.
Minha entrevistada sabe que carros poluem. Já deve ter ouvido falar que, quanto mais pessoas se deslocarem de transporte público, melhor para a cidade, mais o transporte público se viabiliza e aprimora, mais sustentável é, menos congestionamentos se obtém, mais solo urbano pode ser liberado para usos mais nobres que estacionamentos de superfície, mais gente anda na rua, o que ajuda a trazer mais segurança.
Mas não é por ter essa consciência social, coletiva ou ambiental que ela pega o metrô para ir ao Setor Comercial Sul. Não é porque é melhor para a cidade, para a coletividade, para o planeta: é porque é melhor para ela. E está tudo bem, quase todo mundo é assim. São raríssimas as pessoas que tomam – e sustentam – decisões individuais que beneficiam a cidade, a coletividade e o planeta, mesmo que isso contrarie seus interesses individuais, mesmo sabendo que isso não é o mais cômodo, barato ou prático para elas. A elas, minha admiração e gratidão.
Eu já disse várias vezes que a cidade precisa ajudar para que tenhamos mais gente nos espaços públicos. Mas tem horas que a cidade precisa atrapalhar, especialmente no que diz respeito ao automóvel.
Se tivermos cidades com excelentes calçadas e ciclovias e bem servidas de transporte público, com faixas de rolamento lhes dando a preferência ou exclusividade; se tivermos faixas mais estreitas, esquinas com raios menores, menos áreas de aceleração e desaceleração; se não tiver espaço algum para se parar em fila dupla; se tivermos menos vagas de estacionamento e se o estacionamento jamais for gratuito; se o desenho das travessias sempre privilegiar os pedestres e ciclistas; se tivermos menos rotatórias e mais cruzamentos – e outras coisas nessa linha – vai ser muito incômodo usar um carro. Aí, as pessoas, pensando em seus próprios interesses, podem decidir deixar o carro em casa, ou mesmo nem ter um.
A gente precisa desenhar lugares que ajudem a fazer com que as decisões individuais das pessoas sejam aquelas de que a cidade, a coletividade e o planeta precisam.
Não é difícil.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.