Caso eu pedisse a você para me responder qual a primeira ideia que vem à sua cabeça quando escuta a expressão “rua”, seria bastante provável que a resposta fosse a palavra “carro”, ou talvez “movimento”, quem sabe “tráfego”. Estou certo?
Essa é a ideia que fazemos de rua: o lugar para o movimento, que permite às pessoas irem do ponto A ao ponto B. E em nossa mente esse movimento se dá, ou deveria se dar, de automóvel.
Thalia Verkade é uma jornalista holandesa que passou a se interessar pelo tema da mobilidade e espaços públicos quando, de volta aos Países Baixos, depois de viver na Rússia, enfrentou o dilema de comprar ou não um carro elétrico – para a resolver os desafios de seus deslocamentos e garantir que a solução fosse sustentável.
Ao pensar no assunto, ela começou a perceber o tema “congestionamentos” e passou, então, a querer entender a raiz dos engarrafamentos de trânsito e por que eles não conseguem ser resolvidos em parte nenhuma do mundo. Na verdade, eles só aumentam.
A partir daí, Thalia se interessou pelo uso de bicicletas, o que a levou ao urbanista Marco te Brömmelstroet – e assim nasceu o livro “Movimento: Como Reconquistar Nossas Ruas e Transformar Nossas Vidas” (Editora Perspectiva; tradução de Sonia Nussenzweig Hotimsky), recém-lançado no Brasil.
A jornalista começou o trabalho entrevistando pessoas envolvidas em pesquisas e na tomada de decisões acerca da gestão dos espaços públicos. Ficava chocada quando cada um dos entrevistados demonstrava que o espaço público deveria ser pensado para outros usos e não apenas para garantir o movimento das pessoas. Por meio dessas conversas, o leitor da obra vai conhecendo alternativas ao monopólio dos carros no uso das ruas.
O grande mérito do livro é como ele humaniza o debate. Através das referidas entrevistas, de estudos de caso e de uma narrativa acessível, Thalia Verkade e Marco te Brömmelstroet destacam como as decisões de mobilidade afetam diretamente o dia a dia da população. Eles argumentam que a busca pela eficiência e pela rapidez frequentemente ignora questões essenciais como segurança, inclusão, saúde e interação social.
A obra aborda o impacto do automóvel como o principal meio de transporte nas cidades e reflete sobre como a dependência desse modelo exclui outros modos de mobilidade – caminhar, andar de bicicleta, usar o transporte público etc. – que são mais sustentáveis e acessíveis.
Tragédias individuais, derivadas da carnificina que é o trânsito, também vêm à tona e sensibilizam os mais céticos quanto à necessidade de outras prioridades para as ruas que não sejam os carros. Pois é, caro leitor. Também na Holanda o trânsito mata muita gente – apesar de bem menos do que aqui, no Brasil.
Destaco também a maneira pela qual o livro chama a atenção para algo relevante: como até o uso da linguagem foi dominado pela visão carrocêntrica. Você já reparou que falamos “a Paulista está fechada” aos domingos, querendo dizer que a larga avenida está aberta aos pedestres, crianças, idosos, artistas de rua e ciclistas? Ou como usamos a expressão “usuários vulneráveis” para pedestres e ciclistas, que não eram “vulneráveis” até o aparecimento dos automóveis, que nunca são tratados como os “usuários perigosos” das vias?
Por fim, a obra traz recomendações práticas de como agir para mudar a realidade em favor de cidades mais sustentáveis, seguras e conectadas. Não é pouco.
Sérgio Avelleda é coordenador do Núcleo Mobilidade Urbana do Centro de Estudos das Cidades | Laboratório Arq.Futuro do Insper
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.