São Paulo nas alturas, Lisboa na densidade e na vitalidade

26 de outubro de 2023

O jornalista Raul Juste Lores transformou uma pesquisa sobre os imigrantes Arquitetos que mudaram a paisagem de São Paulo nas décadas de 1940, 1950 e 1960 num livro de rara importância para a arquitetura brasileira, o “São Paulo Nas Alturas” (raro em todos os aspectos, porque — por ora — esgotado).

Mais do que uma mera pesquisa bibliográfica, cumpre a missão de resgatar a história da maioridade da metrópole pelas lentes, projetos e empreendimentos daqueles que precisaram trocar a Europa pelo Brasil fugindo da perseguição e da guerra.

A obsessão brasileira pela semiótica é diametralmente oposta à importância dada à história e seus personagens. Na arquitetura não foi diferente, com um agravante: pouco se conhece sobre os autores e empreendedores dos edifícios mais bacanas e revolucionários de São Paulo.

Quer dizer, todo mundo conhece os edifícios que continuam inspirando gerações de profissionais, ensinando a boa relação com a cidade e o apreço pelas artes visuais “embarcadas” na Arquitetura. Paradoxalmente, são quase desconhecidas a história e a produção desses Arquitetos, empreendedores e construtores.

Com a pesquisa e o livro, essa lacuna pode ser preenchida nas escolas de Arquitetura paulistanas e brasileiras.

Do livro, vieram as palestras e, mais a frente, uma série de vídeos tratando, numa primeira série, dos edifícios e profissionais citados no livro. Na sequência, tratando de edifícios contemporâneos, intervenções e o impacto da legislação na produção e na cidade, com pitadas de inspiração asiática e européia como comparação ao que poderíamos estar fazendo.

Seu canal no Youtube, o São Paulo Nas Alturas conta com 77 videos, quase 100 mil inscritos e — espantosos — 7,8 milhões de visualizações.

Raul fez, nesses últimos 5 ou 6 anos, mais pela arquitetura e urbanismo brasileiro do que 40 anos de escolas de Arquitetura e Urbanismo fizeram, resgatando boas práticas, bom senso e lógica em casos bem sucedidos e amplamente testados ao longo do tempo.

E, falando de boas práticas, bom senso e lógica em casos bem sucedidos e amplamente testados ao longo do tempo, Raul inicia agora a fase “internacional” de sua pesquisa, explorando Lisboa sob o prisma da arquitetura e do urbanismo, sua vitalidade, acolhimento e, também, defeitos e desafios.

Não quero estragar a surpresa, mas nesse episódio sobre Lisboa estão todas a mudanças que defendo (e sobre as quais escrevo) para melhoria e vitalidade das cidades: eliminação dos afastamentos frontal e de fundos, alta densidade, uso misto, fruição e respiro para o meio dos quarteirões, desobrigação de garagens, ausência de áreas comuns ridiculamente exageradas (verdadeiras “feiras de quermesse”) e, em determinadas ruas e setores da cidade, gabarito que limite a altura dos prédios.

Enfim, nada que Paris, Barcelona, Madri, Genebra, Milão e a própria Lisboa já não pratiquem há, pelo menos, 200 anos (algumas a 500 ou mais anos).

Regras e orientações conhecidas por Ouro Preto, Paraty e Rio de Janeiro a 300 anos pelo menos, tanto quanto as metrópoles do século 19, ao menos até as décadas de 1940.

Olhos para a rua (Jane Jacobs), comércio nos térreos, diretamente abertos para os passeios, alta densidade, cidade compacta, sistema de transporte público sobre trilhos, muitas praças (pequenas, grandes), ruas de baixa capacidade e baixa velocidade.

Nada de novo, tudo ampla e extensamente testado. Nem tudo deu certo mas, como acreditam numa evolução incremental e constante (ao invés de fórmulas radicais e grandes novidades jamais testadas), puderam ajustar, adequar e incrementar, sem desorganizar a cidade.

Lisboa experimentou, claro, fases de degradação urbana e desvalorização imobiliária, mas políticas de atração de investidores e regras ponderadas para revitalização de edifícios históricos (basicamente todos) impulsionaram de forma quase frenética uma revitalização impressionante.

Neste percurso, importantes lições nutriram convicções como a opção pelo pedestre, o resgate de praças outrora transformadas em estacionamentos, o incremento da rede de transporte público e o investimento em segurança pública.

Cabe aqui uma pergunta sincera: se nossos pares europeus conseguem criar e manter regras e diretrizes bem sucedidas, que evoluem de forma incremental, porque no Brasil não conseguimos?

Aliás, duas perguntas: qual é a dificuldade em reconhecer iniciativas mal sucedidas e voltar com regras e diretrizes que já funcionaram aqui, e que continuam funcionando na Europa? 

Pensando bem, três perguntas: quando foi que trocamos o conhecimento vernacular e o bom senso pela experimentação vazia e pretensiosa?

Chega a ser um pouco chocante, considerando a quantidade de exemplos bem sucedidos, estáveis e confiáveis, a quantidade e disponibilidade de códigos urbanísticos prontos para uso ou levemente adaptados. Sequer há a necessidade de diagnósticos, avaliações, planos sofisticados e suas comissões sem fim.

Quem dera os desafios de segurança pública, educação e saúde fossem de tão fácil diagnóstico e implementação (cujo custo é inteiramente dos empreendedores privados)? 

Quem dera as dificuldades tivessem perguntas tão óbvias e respostas tão fáceis quanto a qual modelo urbanístico adotar?

Perguntas, perguntas.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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