São Paulo, entre as delícias e os sofrimentos

7 de outubro de 2025

Ler o livro “Viver e Morrer em São Paulo”, de Jeffrey Lesser, foi para mim extremamente prazeroso — e creio que assim o será para todos que se interessem pela vida urbana, seus desafios, contrastes e dramas. Conheci o autor enquanto era professor visitante do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP). Fiquei impressionado pela vitalidade e bom humor daquele historiador americano, que se interessa pelo Brasil e por São Paulo, combinando intensidade afetiva e amorosa com um domínio historiográfico preciso e rigoroso. Lesser ocupa atualmente a Cátedra de Estudos Brasileiros na Universidade Emory, em Atlanta (EUA), e é pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP.

Como sou um patologista de seres humanos, permiti-me definir Lesser como um patologista urbano, que através de seu microscópio provido de lentes de humanidade analisa as ruas, as pessoas e suas histórias, o território físico e afetivo onde vivem e os valores culturais de cada época. 

A obra se organiza em seis capítulos principais, nos quais o autor articula história social, saúde pública, imigração e urbanismo de São Paulo, tendo o bairro do Bom Retiro como epicentro analítico na transição dos séculos 19 e 20.  A pesquisa integra fontes históricas (arquivos, jornais, registros oficiais), observações etnográficas e experiências pessoais de Lesser, compondo uma narrativa interdisciplinar que conecta passado e presente.

O fio condutor é a relação entre imigração, saúde e infraestrutura urbana, demonstrando como políticas públicas, condições ambientais e trajetórias migratórias se sobrepõem para moldar desigualdades em saúde. A escolha do Bom Retiro, um dos cinco bairros paulistanos que tradicionalmente receberam e recebem até hoje imigrantes (ao lado do Brás, Bexiga, Barra Funda e Belém, formando os cinco Bs), é apropriada . Ela permite ao autor colocar em cena uma amostra representativa do processo de mudanças que São Paulo desvairadamente experimentou no período analisado. 

Não pense, contudo, que o livro é um relato de tragédias. O texto é sensível e apresenta tinturas de humor, como as imperdíveis crônicas de Juó Bananére, pseudônimo do jornalista e engenheiro civil paulista Alexandre Ribeiro Marcondes Machado (1892-1933), que contou a história de Sampa no português macarrônico dos imigrantes que afluíam à cidade daqueles tempos.

Ao longo de toda a obra, Lesser mostra como viver e morrer em São Paulo é, sublinhemos, inseparável das histórias de imigração, das políticas de saúde e da infraestrutura urbana. O autor demonstra que a desigualdade em saúde não é produto apenas de condições atuais, mas de camadas históricas de exclusão e resistência.

São Paulo cresceu e novos guetos de exclusão foram espalhados pela cidade. Para além dos cinco Bs, a cidade ganhou um abecedário complexo. Eu convivo diariamente com os corpos das pessoas falecidas nos novos guetos de exclusão, lendo a cidade através das doenças encontradas nos seus corpos e na narrativa dos familiares.  Novos desafios impostos pelas mudanças de clima, pela poluição do ar e pelas novas formas de trabalhar levaram as cidades a um burnout urbano.

A maior parte do que consideramos como civilização foi construída pela força criativa do espírito humano, alimentado pela seiva vital composta pela troca e mistura de ideias, de saberes, de sonhos e utopias, que se renovam todos os dias no ambiente urbano.  Esse é o palco de um conflito eterno entre as delícias e os sofrimentos, que convivem nas cidades sem perfeito entendimento.

Paulo Saldiva
Coordenador da Iniciativa Saúde Urbana do Centro de Estudos das Cidades – Laboratório Arq.Futuro do Insper. Médico formado pela USP, onde é professor titular do Departamento de Patologia desde 1996.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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