David Gilmour tem 78 anos e está lançando um novo disco, e uma das músicas disponíveis (Between two points) traz a sua filha, Romany, nos vocais. A letra fala, nas palavras do site Letras, de “uma experiência transformadora que, embora dolorosa, traz um novo entendimento e uma mudança de perspectiva. A letra aconselha a parar de esperar e adivinhar desde cedo, e a começar a aceitar as coisas desde o primeiro dia. Essa aceitação, no entanto, vem com a resignação de que coisas erradas acontecerão e que é preciso deixar que elas passem, rindo através dos golpes e da dor.”
David Gilmour é um gênio, e do alto de seus 78 anos intensamente vividos e do legado artístico e musical, ainda tem fôlego e inspiração. Quem, numa outra época, ajudou a moldar o mundo através de sua música, continua fazendo de utopias uma realidade melhor, mais rica; continua influenciando e entregando poesia a todos e a qualquer um que escute suas músicas.
Alain Bertaud se formou em arquitetura em Paris. Participou com Le Corbusier da construção da nova cidade de Chandigarh, na Índia, trabalhou na prefeitura de Nova Iorque e foi planejador urbano pelo Banco Mundial. Rodou o mundo, conheceu cidades.
Alain é uma outra espécie de gênio, do tipo intuitivo e empírico, mas que leva a sério os dados e produz análises riquíssimas a partir das experiências vividas. E foi no nascedouro dessa cidade utópica que compreendeu a enorme, a intransponível distância entre a visão revolucionária e utópica de Le Corbusier e a sua materialização.
Se nas artes as utopias ganham vida e são materializadas em músicas que espalham a mensagem, nas cidades a coisa é bastante diferente, e com consequências terríveis. Terríveis e de longo prazo, não raro irreversíveis.
Foi isso que Alain percebeu, viu, estudou e materializou em forma de conhecimento no seu – imperdível – livro, Ordem Sem Design. A criação de favelas no entorno da nova cidade de Chandigarh acontecia ao mesmo tempo, de forma sincronizada com o nascimento da nova capital.
E não podia ser diferente, claro, quando há uma parte da população deixada à margem, esquecida. Eram os trabalhadores que erguiam a cidade, mas também os pequenos comerciantes e prestadores de serviço. A utopia é sempre seletiva. Não é para todos, e nasce com manchas indeléveis provocadas pelas limitações intrínsecas a um modelo com vícios e defeitos insuperáveis.
Numa antecipação do que ocorreria em Brasília poucos anos depois, a setorização por usos segrega e engessa a espontaneidade de tal forma que apenas favelas e ocupações “subnormais” conseguem dar vazão às necessidades e ao espírito humano, e acomodar as necessidades prementes no tempo correto.
Não há como falar das observações e do conhecimento que Alain gentilmente compartilha conosco sem dar alguns spoilers: utopias como Chandigarh, Brasília e Belo Horizonte pervertem a lógica e jamais poderiam dar certo, assim como o – ridículo – The Line já está fadado ao fracasso.
E tome outro: se aperta de um lado, vaza do outro, e quanto mais regulação, mais regras e maiores as limitações construtivas, mais invasões e mais favelas, expressões de crescimento espontâneo e desordenado, quase sempre nos lugares impróprios.
São 2 gênios, 2 caras vividos, mas a diferença entre Gilmour e Bertaud é que um deles viu a realidade de perto e as tentativas frustradas de concretização de utopias em forma de cidade. Viu de perto os efeitos nocivos do planejamento centralizado.
Ordem Sem Design é, mais do que a soma de experiências e o conhecimento produzido, um alerta sobre os riscos reais e os custos sociais do excesso de planejamento, de regramento, de uma burocracia poderosa e pretensiosa, e do academicismo exagerado.
Alain viu de perto e aprendeu que, quando se trata de cidades, não se pode brincar.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.