Receita de fachada ativa

13 de outubro de 2023

Anota aí!

Desde 2020, damos uma aula que consiste em pedir aos estudantes que nos indiquem ruas de que eles gostem, que achem marcantes, interessantes, preferencialmente na qual já tenham estado. Eles dão um pequeno depoimento, justificando sua escolha e, a partir daí, usando o Google Earth, a gente vai conhecê-las, medir sua largura, o comprimento de suas quadras, a frente dos lotes que se voltam para elas. Pelo Street View, a gente vê características do seu desenho urbano, as atividades que abrigam, a altura dos prédios. A ideia é ganhar repertório e entender o que o desenho desses lugares tem a ver com o fato de eles serem tão queridos e lembrados.

TODAS as ruas indicadas são comerciais e têm fachadas ativas. Isso, mesmo nos locais mais variados: as ruas deste semestre estavam em 4 diferentes estados brasileiros, na Argentina, Espanha, Alemanha e Holanda.

Fachadas ativas são térreos que se voltam para o espaço público, com entradas de prédios, vitrines de lojas, portas se abrindo diretamente para as calçadas. Estão intrinsecamente associadas ao uso comercial, e seus edifícios não possuem recuos frontais ou laterais: estão no limite do lote e se grudam lado a lado, de modo que o térreo de um continua no do outro, formando uma longa parede de atividades que a gente percorre sem perceber, especialmente se o trajeto for contínuo e nivelado.

Nas fachadas ativas, a gente vê vendedores, clientes, curiosos. Elas não raro se expandem para a calçada e as ocupam com mesas e cadeiras ou produtos em promoção. Há som de música, pessoas descarregando coisas de um caminhão, gente conversando. Há um friozinho de ar-condicionado que escapa de dentro e vem refrescar a gente do lado de fora. Há cheiros — de comida, de perfume, de couro de onde consertam malas e sapatos. Há movimento. Há vigilância informal.

Não por acaso, os relatos dos estudantes falam de animação, de novidade, de se sentir seguro, de se resolver várias coisas num mesmo lugar.

A fachada ativa é mais interessante quanto mais lojas ela tiver, numa menor distância. Imagine um trecho de rua que tem, de um lado, um térreo com uma única loja (um banco, digamos) e, do outro, um térreo com 10 lojas diferentes. As chances de eu preferir passar do lado onde tem mais lojas costumam ser maiores.

Do lado do banco, provavelmente vou andar rápido, para passar logo para a próxima quadra. Minha atenção vai estar muito mais voltada para onde estou indo do que para o que tem ao meu lado, porque o que tem ao meu lado é praticamente uma fachada inativa, já que bancos só precisam de uma porta e não têm vitrines. Do lado das 10 lojas, vou andar um pouco mais devagar, porque lá tem mais coisas e pessoas para ver, conhecer e me dar conta. Mais estímulos visuais, auditivos, táteis, olfativos.

Mas… se isso é uma coisa tão legal, como é que a gente não tem mais fachadas ativas?

Sinto dizer que não é questão da boa vontade das pessoas. Considerando-se a real vocação da rua para abrigar o uso comercial, é uma questão que passa, fundamentalmente, pelo desenho (subdivisão das suas quadras em muitos lotes com frentes estreitas), pelos parâmetros urbanísticos (inexistência de recuos frontal e lateral), e pela legislação de parcelamento (não permissão de um infinito remembramento).

O remembramento — a ação de se unir vários lotes para fazer um prédio com maior área — é útil para trazer diversidade de tipos edilícios e tornar ainda mais variada a oferta de funções na rua. Mas é preciso que se estabeleça um limite para o número de lotes que podem ser fundidos, para que não se mate a vitalidade do lugar.

Voltemos ao nosso exemplo.

Do lado das 10 lojas, foram previstos 10 lotes com fachadas estreitas. Não houve remembramento, e cada lote recebeu um prédio, sem recuos, tendo, em seu térreo, uma loja e um acesso para os seus pavimentos superiores. Só aí já são 20 portas. A soma desses fatores ajudou a proporcionar a fachada ativa e tudo de bom que vem com ela.

Do outro lado da rua, seja porque já havia um único grande lote ou porque os 10 lotes foram todos comprados por um mesmo proprietário e remembrados, o resultado foi um só: um edifício único, que, como todo edifício, só precisa de um acesso e poderia fazer só uma loja. Pior: ele poderia fazer várias lojas, todas voltadas para dentro de si mesmo, como um monte de prédios em Brasília vem fazendo, prestando um desserviço para o espaço público.

“Ah, mas ele poderia ter dividido o seu térreo em 10 lojas voltadas para fora, e o efeito seria o mesmo que o do outro lado da rua.” Verdade. Poderia. Mas ele fez?

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Arquiteta, professora da área de urbanismo da FAU/UnB. Adora levantamento de campo, espaços públicos e ver gente na rua. Mora em Brasília. ([email protected])
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