Não é contraditório que uma casa de favela em Belo Horizonte ganhe um prêmio internacional de arquitetura, como A Casa do Ano, pelo site ArchDaily, na mesma semana que ocorre uma tragédia humana com 65 mortos, até o momento, em um bairro popular informal, em São Sebastião, litoral norte de São Paulo?
Há um litigioso divórcio entre a sociedade civil, e suas conquistas na esfera pública, e como são implementadas as políticas públicas no Brasil, pelos governos. Da relação carnal democrática entre eleitores e eleitos no dia do voto, logo depois se sucedem longos dois anos de separação de corpos, resultando em desconfiança e vítimas fatais, até a renovação do compromisso nas urnas, sucedida por mais rupturas.
A etimologia da palavra voto, do latim votum, significa uma promessa ou pedido feito à divindades, um pacto entre mortais e o divino. Desta interpretação simbólica, o papel depositado em urnas de argila nas origens das práticas democráticas na Grécia antiga, era também voto, significando uma mensagem de compromisso comum, entre humanos, com o tempo futuro. Portanto votar é desejar e alcançar. Ou era.
Projetada por um coletivo de arquitetos e artistas, chamado Levante, liderado pelo arquiteto Fernando Maculan, a casa de 66 m² na favela do Aglomerado da Serra na capital mineira, mostra o enorme potencial da Lei Federal de Assistência Técnica, de 24 de Dezembro de 2008, cujo caput diz que “assegura às famílias de baixa renda assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social”, para logo repetir e afirmar, aprofundando em princípios, logo em seu primeiro artigo, ”como parte integrante do direito social à moradia previsto no art. 6o da Constituição Federal”
Para quem é essa Constituição afinal? O sacrifício em criá-la, além de outros instrumentos, como o celebrado, e pouco executado, Estatuto das Cidades, não tem alterado a realidade da moradia urbana, mesmo após 35 anos. A lei de melhoria habitacional aprovada há 15 anos tem baixíssima efetividade.
A cidade de Salvador realizou melhorias em mais de 20 mil domicílios. Maricá planeja investir em cerca de 1.200 habitações precárias. Governos de direita e de esquerda tomaram decisões acertadas. O terceiro setor, por meio de ONGs, tem realizado experiências que já chegam a poucos milhares.
Felizmente, graças às políticas de cotas universitárias, temos cada vez mais estudantes de arquitetura e arquitetos oriundos de favelas. Muitos se dedicam a reformar as casas dos vizinhos. O alcance em escala, econômica e de inclusão social, mitigaria riscos ambientais também, se programas de melhorias habitacionais fossem priorizados.
Reforçar a estabilidade de moradias, colocar tetos, lajes, traria responsáveis técnicos e resultaria em mapas detalhados sobre casos críticos. Construir cozinhas e banheiros, reduziria problemas de saúde. Abrir janelas e combater umidade, aliviaria doenças respiratórias.
Tais trabalhos despertariam a criatividade de arquitetos jovens, com resultado em dignidade e auto-estima. Se outra lei fosse usada, a da Regularização Fundiária, avançaríamos mais.
O Brasil já gastou mais de 100 bilhões de dólares no Minha Casa Minha Vida, com baixa efetividade nesta realidade entretanto.
Imaginemos este montante aplicado em iniciativas mais locais, distribuído entre cooperativas, empresas de arquitetos, de engenharia, e ONGs, orientado a mudar de vez a injustiça ambiental.
Há um sonho intenso de país escrito nas leis, assim como há beleza a ser despertada.
Mais prêmios de arquitetura e zero mortes.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.