A construção de pequenos prédios com apartamentos no Lago Sul foi polêmica em Brasília nos últimos dias. Mais cedo neste ano, a região administrativa havia sido notícia nacional por aparecer como o possível “município mais rico do Brasil” — com renda superior a R$ 20 mil por habitante. É verdade que não faz lá muito sentido (a região tem mais característica de bairro do que de cidade), mas vale o gancho: faz sentido manter a região tão próspera ocupada exclusivamente por casas?
Vamos nos ater aqui à ideia de mudança do zoneamento da cidade, não sobre o controverso empreendimento no Lago Sul — que de fato parece burlar as normas atuais. O Lago tem uma das menores densidades do Distrito Federal: 7 habitantes por hectare, ou somente 2, a depender da metodologia (Codeplan, 2015).
É uma área central — são apenas 5 km até a Praça dos Três Poderes de duas das suas três pontes. Além da alta renda e elevado capital humano que circula no “bairro”, a ineficiência do Lago também fica saliente quando se considera a capacidade instalada de infraestrutura e serviços públicos.
A controvérsia não é então muito diferente daquela quanto ao Jardins em São Paulo, explorada aqui no site. Apenas uma família pode ocupar cada um dos terrenos (que são enormes, somando ao desperdício do espaço urbano). Sua sigla é SHIS, Setor de Habitações Individuais Sul. Eventual mudança no Lago Sul poderia se inspirar no seu primo, o Lago Norte, que já admite apartamentos (CA).
As notícias da revolta contra os predinhos no Lago Sul me fazem pensar em outra, deste mesmo verão. É a do reajuste das passagens de ônibus para as cidades do Entorno. As tarifas ultrapassam R$ 8 para Luziânia e Santo Antônio do Descoberto, esbarrando em R$ 9 para Planaltina e Águas Lindas. Muitos trabalhadores de Brasília habitam nestes Municípios.
O custo é alto em parte porque a distância é enorme. E a distância é enorme porque em boa parte do DF o direito constitucional à moradia é limitado. É verdade que o adensamento em áreas ricas como o Lago Sul só beneficia indiretamente esta população, que não irá morar ali. Mas revendo restrições em várias áreas do DF é possível trazê-la pelo menos para mais perto dos empregos e serviços da área nobre.
A lógica é explicada em outros textos aqui no Caos: mais oferta de residências em áreas centrais atenua o crescimento dos preços no conjunto da metrópole e aproxima os mais pobres por um efeito-cascata (um exemplo simplório seria o do apartamento no Lago ocupado por uma família que se muda de Águas Claras, liberando seu apartamento para uma que vem de outra RA e assim por diante, até chegar no Entorno).
O Lago Sul (ou SHIS) é apenas um exemplo mais atual do direito à moradia impedido em Brasília por regras anacrônicas (parte deste bairro central é até hoje formalmente designada a chácaras!). Há até áreas mais bem localizadas em que a oferta de residência poderia ser ampliada: por exemplo, nos setores comerciais (SCS, SCN), de embaixadas (SES, SEN), de clubes (SCES, SCEN) e hípico (SHIP) — quem sabe também ao longo das avenidas W3, W5 e L2 (ou setores de grandes áreas).
Nosso modelo gerador de desigualdade talvez faça ainda menos sentido no pós-pandemia marcado pela expansão do teletrabalho, que em outras cidades do mundo têm exigido a flexibilização do zoneamento. Famílias seguem pagando caro para morar longe, enquanto regiões nobres ficam subutilizadas — já que trabalhadores circulam menos do que antes.
Em Brasília, precisamos refazer um monte de siglas.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.