Ninguém escolhe nada feio ou ruim, de qualidade inferior, deliberada ou conscientemente. O que é feio, o que é ruim é, também, impopular. O que é feio ou ruim, sobra, encalha.
Essas seriam afirmações insofismáveis, não fossem dois fatores: desconhecimento e campanhas de marketing.
Sobre desconhecimento, nem há o que falar, a não ser torcer para que as pessoas leiam mais, estudem mais e se informem melhor sobre temas que têm impacto em suas vidas.
As campanhas de marketing, por outro lado, têm a capacidade de “empurrar” o feio e o ruim, tornando as escolhas pessoais e intangíveis, ao dissociar essas escolhas de aspectos racionais e tangíveis. Quanto mais aceitação do que é feio e de pior qualidade, maior o sucesso da campanha.
Tem ciência aí, cujo roteiro mais conhecido é o de substituir resultados mensuráveis e objetivos palpáveis por atributos imprecisos, tais como “melhor”, “mais interessante”, “acolhedor”, “humano”, “agradável” e, dois dos meus favoritos, “humano” e “sustentável”.
Vale qualquer terminologia que, ao invés de medir e qualificar, promete um mundo melhor. Troca-se um resultado real por uma espécie de acolhimento emocional, promessas vazias e frases de efeito, intangíveis e subjetivas.
Como seria possível uma cidade “mais humana” ou “acolhedora”?
Ou “sustentável”?
Ou — ainda — que “promova a igualdade”?
Cidades são organismos vivos, criadas e incrementadas constantemente por agentes diversos, cada um com responsabilidades e objetivos distintos, desconexos. Não há coordenação nem movimento sincronizado, mas uma miríade de agentes em busca de uma oportunidade. Enquanto alguns poucos lideram tendências, a grande maioria segue os líderes ou movimenta-se por instinto.
Não é papel dos empreendedores enxergar a cidade, tampouco cuidar de suas deficiências.
A única entidade com responsabilidade e abrangência ilimitada numa cidade é a sua prefeitura que, para cumprir suas responsabilidades e objetivos, recebeu do legislador o direito de cobrar impostos e de estabelecer planos diretores, fiscalizar e fazer cumprir.
E aí a coisa se complica porque, no mundo real, não faz sentido um plano diretor que tenha como objetivos “criar uma cidade mais humana”, “promover a igualdade” ou “garantir a sustentabilidade”.
E não tem porque essa terminologia não trata de objetivos, mas de desejos.
Planos que não trazem objetivos claros, métricas tradicionais e o detalhamento dos instrumentos para cumprimento dos objetivos propostos podem até ter um valor político e ideológico relevante, mas como um “mapa para o futuro”, não tem qualquer valor. São, antes de tudo, um desperdício do tempo da população e dos recursos públicos.
Planejamento é uma coisa, carta de intenção é outra. Gestão da cidade é uma coisa, disputa política é outra. Ideologia é uma coisa, resultado é outra.
Planos Diretores só funcionam quando sua porção estratégica e suas normas são concebidos por agentes exclusivamente técnicos; a população, através de representantes locais, participa trazendo a visão das necessidades e deficiências locais. A academia e os teóricos participam indiretamente produzindo conhecimento e pesquisas que subsidiam o Plano.
Por agentes técnicos, uma combinação de integrantes do corpo técnico municipal, arquitetos independentes e agentes de mercado, numa proporção tal em que o debate e a negociação sejam necessárias para tudo aquilo que não seja consensual, sem a prevalência de qualquer segmento.
Basta avaliar a composição dos delegados integrantes das últimas 4 conferências metropolitanas para perceber a prevalência de “setores sociais” e de técnicos ligados ao poder público, para se dar conta que o desfecho jamais será outro, que não a vontade do prefeito de plantão.
A realidade passada (e recente) corrobora a afirmação, na qual a participação da sociedade e na produção de um Plano de caráter eminentemente técnico foram cooptados por participação “social”, não técnica, essencialmente política, e com a prevalência de uma visão ideológica pré indisposta ao empreendedorismo como mecanismo de desenvolvimento.
Quem não conhece o sistema adotado por Londres, uma metrópole muito maior e mais complexa que Belo Horizonte, neste ponto do texto, poderia me querer mal. Não me queira mal (não vale a pena), porque já conto como Londres funciona.
Londres tem uma estrutura de planejamento urbano permanente e independente (Greater London Authority), diretamente ligada ao gabinete do prefeito. Contrário ao que se possa imaginar (ou ao que estamos acostumados), tem uma composição que não pode ser alterada pelo prefeito de plantão (composição), e inclui, claro, além do time de coordenação e viabilidade, profissionais de mercado de planejamento urbano, arquitetos e urbanistas, engenheiros.
O planejamento urbano de Londres (The London Plan) é revisto e reeditado a cada 4 ou 5 anos (2004, 2008, 2011, 2016, 2021), mas emite revisões menores e consolidadas a cada 2 anos.
Sendo — ao mesmo tempo — um planejamento estratégico de longo prazo e um conjunto de ações setorizadas e de curto prazo (ações racionais, fundamentadas em demandas colhidas em cada local, objetivas e com métricas claras para cada setor ou bairro), a cidade consegue preservar uma visão de futuro e a perseguição sadia de suas vocações, sem que se descuide das demandas locais, específicas, urgentes ou necessárias.
O sistema londrino permite, citando o nosso grande (e saudoso) urbanista, Jaime Lerner (site), implementar as “acupunturas urbanas” sem perder a visão de conjunto, e sem descuidar da visão estratégica de longo prazo.
E Belo Horizonte?
Ainda presa no confronto ideológico onde o “mercado imobiliário” é composto por “capitalistas selvagens” e “pessoas que não pensam na cidade, apenas no seu bolso”, mais preocupado em criar mecanismos que “protejam a cidade” dessa “ganância”.
Para quem se vê como um martelo, todo o resto é prego, e Belo Horizonte padece dessa visão (e disputa) a décadas, com uma prefeitura (e seus planos diretores) mais preocupada em coibir os excessos que pensa existir, do que se aproveitar dos recursos, da energia, da disposição, da agilidade e do empreendedorismo do mercado imobiliário.
Falei de feiura e de baixa qualidade; falei de martelo e prego.
Quando a beleza não importa e a qualidade está associada a termos subjetivos e abstratos, a criatividade dificilmente brota. Da mesma forma (e pelas mesmas razões), inovação, engajamento e propostas inusitadas, “fora da caixa” não florescem senão num ambiente de abertura, confiança e aposta na capacidade alheia.
Já não é possível revitalizar (e desenvolver) uma cidade apostando em ferramentas e normativas antigas, tampouco num clima de revanchismo e desconfiança. Afinal, as pessoas — cada vez mais — podem escolher morar em outro local.
Quem sabe se, para variar um pouco (variar em relação ao excesso de restrições dos últimos 50 anos), apostarmos mais na redução das restrições urbanísticas, na energia do empreendedorismo e na criatividade dos arquitetos e urbanistas, ao invés de depender de grandes obras viárias e intervenções caríssimas?
Não acredita? Não vale a pena apostar? Você prefere continuar investindo numa cidade “mais humana”, mais “acolhedora”, mais “sustentável” e que “promova a igualdade”?
Então não precisa ir longe; o resultado de décadas investindo nessa visão já está aí, e o resultado já é conhecido.
Abri o texto falando de desconhecimento: essa desculpa já não vale mais.
#FicaADica
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.