Panorama de implementação da Outorga Onerosa do Direito de Construir nas capitais brasileiras

7 de novembro de 2023

Muitos mal-entendidos cercam a outorga onerosa, por isso vale uma definição inicial. É o instrumento urbanístico previsto no ordenamento jurídico brasileiro que estabelece a distinção entre direito de propriedade e direito de construir e operacionaliza o princípio da justa distribuição dos benefícios e ônus do processo de urbanização. Essa distinção se dá pela introdução do coeficiente de aproveitamento (CA) básico, que define a edificabilidade gratuita de um imóvel, garantindo o uso útil da propriedade imobiliária. 

A edificabilidade adicional, definida pelos limites máximos previstos na legislação urbanística, é considerada recurso público e, por isso, sujeita a concessão — ou outorga — onerosa, isto é, mediante pagamento de contrapartida. Talvez um dos mais frequentes mal-entendidos, é comum a confusão de que a Outorga define a edificabilidade adicional. Importante ter em conta que os limites máximos são estabelecidos por critérios urbanísticos para o direcionamento da produção imobiliária e constam da legislação urbanística mesmo onde não existe outorga.

Inspirado em referências estrangeiras, tanto o conceito, como o instrumento foram elaborados localmente. Essa é uma história que conta quase meio século e começa com a conceituação do “solo criado” em meados dos anos 1970. Nas décadas seguintes houve algumas experiências pioneiras, antes ainda da aprovação do Estatuto da Cidade em 2001. Logo no ano seguinte, a cidade de São Paulo foi a primeira a regulamentar o instrumento sob a nomenclatura “outorga onerosa do direito de construir”, em linha com a lei nacional.

De lá pra cá, a maioria das capitais do país incluiu a Outorga em seus planos diretores: apenas em Boa Vista não há previsão legal para adoção do instrumento. Em 19 capitais há evidências de regulamentação do instrumento, seja por lei específica (em seis delas), seja pelo próprio plano diretor, que estabelece parâmetros suficientes para que a outorga opere. Esses primeiros números indicariam a generalização do uso do instrumento, porém um olhar mais atento revela outra realidade. 

Considerando apenas dois dos requisitos para a aplicação do instrumento — a definição do CA básico e a base de cálculo da contrapartida — o cenário muda bastante. Os municípios que dispõem de elementos consistentes para aplicar a Outorga são, na verdade, minoria. 

Mesmo sem fundamento, é comum a adoção do custo de construção como base de cálculo. Esse parâmetro não reflete as diferenças entre localizações, ou seja, a contrapartida é a mesma em um bairro que recebeu investimento público intensivo (ex. áreas centrais) e onde a infraestrutura é deficitária (periferias). Dessa forma, a compensação é relativamente menor para os imóveis mais bem localizados (e mais caros), comprometendo a distribuição equitativa de ônus e bônus… Por isso, o valor para o cálculo da Outorga, instrumento baseado no conceito de solo criado, deve ser o preço da terra. Apesar da contundência do argumento, em apenas 15 capitais essa noção prevalece.

O coeficiente básico único como regra geral é ainda menos frequente. Somente sete capitais adotam esta lógica. Se o CA básico define a edificabilidade inerente ao direito de propriedade, por que o uso útil para um proprietário deveria ser maior que para outro? A diferenciação dos básicos deveria ser usada como exceção (por exemplo, para tratar áreas com restrição à ocupação, como reservas ambientais ou áreas de preservação patrimonial), não como regra. Afinal, corrigir a distorção gerada pela valorização de terrenos em função da atribuição de índices maiores ou menores é um dos objetivos da Outorga, que só se alcança com a introdução do CA básico único. 

Ao cruzar os dois requisitos (valor e CA básico único), restam cinco capitais: Manaus, São Paulo, Teresina, Recife e Belo Horizonte. Manaus usa o instrumento desde 2004, com o CA básico 2,0 para toda a cidade e uma planta de valores por bairro que é atualizada semestralmente. A pioneira São Paulo só aprovou seu CA básico único dez anos depois de Manaus, em 2014. Teresina, Belo Horizonte e Recife têm regulamentações estabelecidas nos últimos três anos, ainda sem resultados, a primeira com um CA básico 1,5 e as outras duas, com o básico unitário.

Esse panorama mostra que a Outorga está longe de ter sua adoção generalizada, considerando requisitos básicos. Depois de tanto tempo, o instrumento mantém sua relevância para a política urbana? Evidências sistematizadas a partir do caso de São Paulo vêm confirmando resultados importantes que respondem às dúvidas mais recorrentes: não foi observada queda de receita de IPTU ou ITBI, não se verificou queda na atividade imobiliária, nem aumento do preço dos imóveis.

Além disso, o volume de recursos mobilizado é significativo, enquanto seu potencial de redistribuição está por ser confirmado, embora alguns trabalhos já apontem nesse sentido. O monitoramento da implementação em outras cidades, com um olhar especial para a sistematização dessas evidências, é importante para o avanço no entendimento da Outorga e seu potencial nas (e para) as cidades brasileiras. 

Coluna de autoria de Camila Maleronka, urbanista e consultora com experiência em habitação, planejamento e instrumentos de financiamento urbano. Com experiência profissional tanto no setor público com na iniciativa privada, desde 2010, tem trabalhado para o Lincoln Institute of Land Policy em programas sobre gestão fundiária, recuperação da valorização da terra e instrumentos urbanísticos. É consultora para o BID e para o Banco Mundial em temas de planejamento urbano. Doutora em Urbanismo pela USP (2010), concluiu o pós-doutorado no PPGAU/UFF em 2023 e é professora do curso de Urbanismo Social do Insper.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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