Ou voltam as carruagens ou melhoram as cidades

18 de janeiro de 2024

Num mundo atento às questões climáticas, os combustíveis fósseis se tornaram o grande vilão e o alvo mais visível, mas o volume de minério exigido na fabricação das baterias e os métodos de extração empregados em algumas minas (muitas vezes com exploração manual, utilizando crianças, inclusive) fazem dos carros elétricos um problema à parte, e de outra ordem. 

Se imaginar que muitos dos países que mais incentivam os carros elétricos geram parte relevante de sua energia através da queima de carvão, fica meio difícil acreditar que os carros elétricos sejam “limpos” e não-poluentes.

Com isso tudo (mais o senso de urgência), me ocorreu uma ideia que pode ser um grande sucesso nessa encruzilhada entre salvar o planeta e não comprometer a mobilidade: carruagens movidas a cavalo. 

Sim, carruagens movidas a cavalo: nada de combustível fóssil, nada de mineração, nada de queima de carvão. Apenas pasto, feno, água e um torrão de açúcar de vez em quando. Tudo muito natural e sustentável, com pegadas em forma de ferradura, ao invés da – famigerada – pegada de carbono.

Alguns dirão que é uma volta ao passado, e um certo desprezo pela tecnologia e pela segurança, mas um olhar mais atento e profundo revelará que, ao contrário, teremos o melhor dos dois mundos: tração não poluente e uma cabine equipada com a melhor tecnologia automobilística, incluindo ar-condicionado, airbags, cintos de segurança de três pontos, câmeras de ré e sensores de estacionamento, kit multimidia, teto solar, freios ABS e alarme anti-colisão.

Sendo o animal bem adestrado, dá para pensar até em direção autônoma nos percursos de volta para a casa.

Pois é… isso soou muito estranho, não?

Não polui, mas o marco civilizatório transposto no início do século 20 libertou as cidades da dificuldade e dos males que o volume de esterco que os cavalos produziam, não limitado à sujeira, mau-cheiro, insetos e doenças associadas.

Com as cidades, a lógica deveria ser a mesma coisa, e os marcos civilizatórios (junto com as experiências bem sucedidas) deveriam funcionar como uma espécie de “tabula-rasa”, ao invés de postas à prova constantemente por teses não testadas e sem muito fundamento, frequentemente pouco mais que uma modinha.

Densidade, fachadas ativas logo ali, alinhadas no passeio, passeios largos, muitas praças e parques urbanos, rede de metrô subterrânea (complementada e amplificada por VLTs e ônibus de câmbio automático e piso baixo) não são meras opções legais ou planos de mobilidade; são, antes, os marcos civilizatórios e a “tabula-rasa” que diferencia uma metrópole bem sucedida e vitalizada de um ajuntamento urbano descontrolado e disfuncional.

Nem precisa de muita perspicácia para perceber que as nossas cidades estão mais (muito, muito mais) para ajuntamentos urbanos descontrolados e disfuncionais do que para máquinas funcionais onde a vida e os negócios coexistem de forma positiva.

Não acredita? Compare o tempo de deslocamento entre a casa e o local de trabalho para um cidadão de baixa renda nas metrópoles brasileiras e suas equivalentes européias. Agora compare o modal de transporte público. Termine comparando o custo do deslocamento e seu impacto na remuneração mensal do trabalhador.

Agora, pense o seguinte: pesquise a faixa de renda predominante de quem mora em volta de uma praça. E a faixa de renda de quem mora a 200 metros, 500 metros ou 1 quilômetro dessa praça? 

Faça a mesma coisa tendo como referência um teatro, os prédios de escritório, os setores de bares e restaurantes, qualquer atividade cultural e de lazer. Escolas? Universidades? Setor Hospitalar? A resposta será sempre a mesma.

Agora inverta: tendo como ponto de referência os conjuntos habitacionais e os empreendimentos Minha Casa Minha Vida, saia buscando equipamentos de lazer, cultura, educação e saúde no entorno ou nas proximidades. Logo ali? A 200 metros? A 500 metros? 1 quilômetro? 15 minutos? Meia hora? 

Então… nada ou quase nada, certo?

Numa metrópole funcional e vitalizada, o transporte de massa não concorre com os carros e não depende da largura das vias, do trânsito e não fica sujeita a engarrafamentos. Numa metrópole funcional e vitalizada, a população de baixa renda não vive exilada nas franjas da metrópole, a horas dos empregos e alijada do melhor do comércio, da vida cultural, social e do lazer que o resto da população tem à disposição.

Talvez, esse seja o principal “marcador” que diferencia os ajuntamentos urbanos disfuncionais das metrópoles funcionais: a distância (e o tempo) que cada faixa de renda tem em relação aos pólos de referência e importância da vida urbana. A relação será inversamente proporcional ao quanto podem desfrutar do melhor que os centros urbanos têm a oferecer (saúde, educação, empregos, lazer, cultura, serviços e comércio), ou seja, quanto mais longe, menos podem aproveitar.

E aqui voltamos a falar de carroças modernizadas porque, por alguma razão, as metrópoles brasileiras continuam a reduzir a densidade dos centros urbanos, e impor restrições à ocupação dos terrenos (permeabilidade, afastamentos), a evitar as redes de metrô subterrâneo (optando, ao contrário, por ônibus e engarrafamentos), que em conjunto produzem – e potencializam – o cenário caótico que vivem as nossas cidades.

Se não vale voltar a usar carroças, como pode valer reduzir a densidade e expulsar a população de baixa renda para outros municípios. Se não vale voltar a usar carroças, como pode valer investir em um modelo de transporte de massa impróprio e caótico? 

Vai entender.

(coluna publicada na coluna Geleia Urbana do jornal O Estado de Minas)

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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