Quando o Caos Planejado fez ao Instituto o convite para integrar o honroso rol de colunistas que contribuem com a Publicação, uma das consignas foi que compartilhássemos com os leitores um pouco do pensamento sobre as cidades, seu propósito, sua essência, seus potenciais e desafios na perspectiva do nosso mestre, o arquiteto-urbanista Jaime Lerner; do legado vivo que ele e as equipes com quem trabalhou procuraram fundamentar e construir.
Refletindo em como melhor abordar essa instigante proposição, dois pensamentos se sobrepuseram. O primeiro, não exatamente original, foi o de buscar inspiração “na fonte”, ou seja, nos escritos do próprio Jaime. O outro, mais uma angústia que um pensamento, foi magistralmente expresso pelo filósofo, teólogo e matemático Blaise Pascal já em 1656. Em uma passagem de suas Les Lettres Provinciales encontra-se a bastante popular citação, livremente traduzida, “Escrevo-vos uma longa carta por não ter o tempo de escrevê-la breve”.
Pascal imbui nessa frase a profunda consciência que o exercício da boa síntese requer sabedoria e tempo, e que a economia resultante não é expressão de pobreza de conteúdo, mas o oposto da banalidade. É o conhecimento destilado naquilo que tem de mais poderoso e essencial.
De próprio punho, Jaime escreveu três livros. O mais conhecido deles, Acupuntura Urbana, teve sua primeira edição em português publicada em 2003. O último, Quem Cria Nasce todo Dia, é de 2014. Entre eles, há o pequeno O VIZINHO, parente por parte de rua, de 2005.
Inicialmente concebido como um projeto que apresentasse para crianças histórias que se relacionassem com a cidade, os personagens criados acabaram, na admissão do próprio autor, por refletir a preocupação de que traduzissem fielmente seu pensamento em relação à cidade: “me dei conta que gostaria que não só as crianças, adolescentes, adultos e também os profissionais que se ocupam da cidade refletissem sobre esses personagens e suas histórias.” Nos anos que se sucederam, nas múltiplas apresentações que fez nos mais diferentes palcos, uma seleção destes personagens sempre o acompanhava nos slides de abertura.
O VIZINHO é um livro escrito por alguém que teve a sabedoria, o tempo e o amor pelas cidades e pelas pessoas para fazê-lo breve. Num folhear desavisado, sua singeleza e linguagem lúdica podem ser percebidas como superficial. O leitor mais atento, contudo, compreenderá a profundidade do conhecimento ali impregnado e que, propositalmente, quer se fazer acessível: “A cidade não é tão complexa como as pessoas que a deterioram querem que seja”.
Procuraremos, no transcorrer do diálogo representado por essa coluna, colocar em discussão alguns dos pontos-chaves que as metáforas presentes no livro procuram ilustrar e as nossas cidades. E, como provocação inicial, propomos para o debate as implicações do próprio título.
São tanto longevas quanto incontáveis as reflexões sobre a natureza da cidade, seu conceito, sua essência, por pensadores dos mais diversos campos do conhecimento. Para o bem e para o mal, uma procura sem maiores detalhamentos em um buscador qualquer da internet irá revelar, por exemplo, uma série de atributos a adjetivá-la: inteligente, sustentável, resiliente, solidária, criativa, “esponja”, competitiva, humana, “gêmeas digitais”, e assim por diante.
A chamada do título, contudo, parece convidar para sua definição algo da natureza do substantivo, assim proposto logo nas primeiras páginas, e que ficará como pano de fundo para todas as reflexões subsequentes:
“O vizinho é nosso parente urbano
é parente por parte de rua
ou primo-irmão de porta
da mesma descendência: o elevador.”
Ao enlaçar o “vizinho” da porta, da rua, da cidade (esse ser humano-urbano cada vez mais apartado no cotidiano das metrópoles) pelo vínculo do parentesco, da irmandade, da descendência, o título parece destilar e colocar em evidência um dos aspectos mais fundamentais do entendimento do que é uma cidade: um conjunto de vínculos sociais que se expressa no território e que traz em si o potencial de construir relações saudáveis e afetivas a partir das experiências e dos espaços partilhados.
Como será que estamos nos saindo?
Texto de autoria de Ariadne dos Santos Daher.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.