Tenho recomendado romances do turco Orhan Pamuk para colegas que me pedem dicas de livro de literatura e cidades. Não apenas porque reconheço no seu fascínio por Istambul a minha paixão por São Paulo, mas também porque o desenvolvimento urbano da cidade turca guarda muitas semelhanças com o da capital paulista.
Em histórias que atravessam décadas em Istambul, vemos o crescimento das ocupações irregulares em meio ao processo de industrialização, a implantação de vias expressas e viadutos rasgando os bairros, as casas e prédios baixos dando lugar a edifícios cada vez mais altos.
No romance “Uma sensação estranha”, acompanhamos essas transformações pelos olhos de Mevlut, vendedor ambulante de boza (tradicional bebida turca à base de cereais com baixo teor alcoólico), que encarna uma espécie de defesa da tradição ante a modernização devastadora da economia e dos costumes do país.
Em certa passagem do livro, é o processo de industrialização da boza que parece colocar em risco a sua fonte de renda. Em outro momento, é a construção de grandes avenidas e vias expressas que dificulta as travessias a pé do vendedor ambulante.
Enquanto, no passado, em uma sociedade mais conservadora, a boza era uma forma velada de consumir álcool, com o tempo ela perde espaço para o raki, licor de teor alcoólico muito mais elevado.
É a verticalização da cidade e a forma como ela afeta a atividade de Mevlut, porém, que me fez refletir particularmente sobre a questão da escala humana, tão debatida entre arquitetos e urbanistas.
O urbanista dinamarquês Jan Gehl é um dos principais nomes na defesa da ideia de que a arquitetura deve levar em conta a escala humana e a interação com a vida. Muitos utilizam essa visão para criticar, por exemplo, prédios com mais de cinco andares. Outros costumam argumentar que a altura das edificações, no fundo, não importa, desde que os térreos tenham entradas amigáveis, sinalização e fachadas adequadas à escala humana.
No caso particular do vendedor ambulante de boza, a altura dos prédios parece, sim, representar um obstáculo aos seus negócios. Em certa passagem, depois de anunciar “Boo-zaa…” pelas ruas desertas de um bairro antigo, alguém gritou para que ele esperasse e, então, “uma janela se abriu, e Mevlut sorriu, surpreso: uma cesta dos velhos tempos estava descendo rapidamente diante dele” com uma tigela de vidro dentro.
“Vendedor de boza, suba até aqui”, alguém gritou em outro momento, e “dois minutos depois, Mevlut estava na porta do apartamento, com seus jarros de boza, no terceiro andar do velho edifício sem elevador”.
Essas breves passagens deixam mais do que evidente que esse tipo de relação entre o vendedor e os moradores da cidade dificilmente consegue se estabelecer no caso de prédios mais altos, de onde os moradores dificilmente ouvirão os gritos do “Boo-zaa” nem serão capazes de descer uma cesta para que nela seja vertida a bebida.
Guardadas as devidas proporções, podemos traçar um paralelo entre o vendedor de boza turco e os carros dos churros, da pamonha ou do sorvete que costumavam passar pelas ruas de São Paulo e pelos quais guardamos uma nostálgica memória afetiva, mas que praticamente desapareceram dos bairros mais verticalizados.
Algumas atividades econômicas parecem mesmo condenadas à extinção…
“Não desista, vendedor de boza. Nem pense que não adianta tentar em meio a todas essas torres e todo esse concreto”, lhe diz uma cliente.
“Eu vou vender boza até o dia do fim do mundo”, responde Mevlut, para quem a atividade de vendedor ambulante, mais do que a defesa de uma tradição, no fundo se mistura com a sua própria necessidade de caminhar à noite sozinho pela sempre intrigante e estimulante cidade.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.