O sentido do morar para um povo originário

2 de setembro de 2025

Em “O jeito yanomami de pendurar redes” (Editora Perspectiva), o arquiteto e antropólogo Thiago Benucci desenvolve uma etnografia sensível, profunda e surpreendentemente política sobre modos de habitar, de (con)viver e de construir mundos. O livro, derivado de sua dissertação de mestrado em Antropologia Social, defendida na Universidade de São Paulo (USP) em 2020, é também uma experiência de tradução entre formas distintas de pensar o espaço e de transformá-lo.

A pesquisa que serviu de base para a obra foi realizada por meio de uma série de visitas do autor ao grupo Yanomami do Alto Rio Marauiá, no Amazonas, realizadas desde 2016. Nelas, foram decisivos os processos de interação com as aldeias e de escuta de lideranças, sempre com apoio de tradutores. Ao longo da leitura, o trabalho extensivo de Benucci em trazer os significados do morar Yanomami — não apenas como abrigo físico, mas como um conjunto de práticas, relações e cosmologias que envolvem tanto o corpo quanto a floresta — fica evidente.

Passando pelo yãno (temporário), pelo xapono (permanente) e pela hekura (morada dos espíritos), todos em sua profundidade e existência coletiva, o autor reforça que, para os Yanomami, uma casa não é apenas abrigo: é também relação, memória, rito e transformação. E o morar não se restringe ao “estar em uma casa”; estende-se para o “reunir-se pelo diálogo” , algo que só pode acontecer quando se “vive junto”. A todo instante, somos lembrados de que o habitar está em coexistir com a terra-floresta (urihi), cuidar do comum, sustentar a diversidade, relacionar-se com o território. E ainda: que as redes, ao serem penduradas, seja de maneira fixa ou temporária, denotam que ali se faz uma morada. Trazem consigo, portanto, um vínculo com o lugar, permitindo acessar o modo de habitar. 

Nesse percurso, o livro tensiona ideias convencionais napë (não-yanomami) de planejamento e construção, e oferece uma contribuição relevante para pensar “arquiteturas ainda não formuladas”, que levem a sério o habitar, o cuidar, o construir e também as cosmologias e os modos de existir que sustentam tais atos. 

Nesse sentido, a obra também assume uma dimensão política e pedagógica. A arquitetura, aqui, aparece como aliada da luta por formas de vida que resistem, persistem e ensinam. Em tempos de crise climática e de urgência por novos pactos entre humanos e natureza, o livro provoca perguntas que vão muito além da etnografia, como esta, incontornável: que arquiteturas, cidades, territórios, práticas e sociedades sustentam o viver coletivo e plural?

E é nessa provocação que possivelmente se encontra uma das principais contribuições de “O jeito yanomami de pendurar redes”. Para além de trazer um modelo ou uma regra para uma arquitetura, o autor nos convida a refletir sobre outros sentidos da existência cotidiana, inundados por um extraordinário levantamento que ainda joga luz sobre uma faceta da origem da arquitetura e das cidades brasileiras — pouco conhecida, aliás, até para aqueles que passam por um curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo, por exemplo.

Como derradeira observação, cabe mencionar que o formato da obra — padrão da coleção em que se insere — talvez não seja o mais amigável para a visualização das imagens. Por essa razão, a leitura pode ganhar muito se for acompanhada da dissertação original, na qual o conteúdo gráfico é mais amplo e está em cores. 

Heloisa Loureiro Escudeiro
Coordenadora-adjunta do Núcleo Arquitetura e Cidade do Centro de Estudos das Cidades – Laboratório Arq.Futuro do Insper

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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