O senso de coletivo e a governança de todas as coisas comuns

14 de julho de 2023

Caros cidadãos,

Inauguro hoje, com muito gosto, este canal de diálogo tendo em comum com vocês o interesse inquieto pela investigação das complexas pautas urbanas. 

Quero crer que esta oportunidade que se abre apontará como um espaço à provocação, na contramão da inércia e da omissão.

São muitos os temas que pretendo trazer à nossa reflexão, mas como tema digno de um artigo inaugural, penso que o mais relevante deles frente à melhora da qualidade da vida urbana contemporânea seja o SENSO DE COLETIVO ou a responsabilidade perante o bem coletivo e a perspectiva da boa governança de todas as coisas comuns.

Onde se encontra o sentimento de coletividade e a sua tradução espacial nos lugares públicos ou de uso público nas cidades?

Para tratar do sentimento de COLETIVIDADE tão fundamental na garantia de qualidade de vida nos ambientes urbanos, antes de tudo, é importante enfatizar e compreender que as cidades são compostas por DIVERSIDADES. Diversidades estas, provenientes de vozes culturais, socioeconômicas, étnico-religiosas, etárias, das mais plurais, desiguais e polifônicas. 

A partir da constatação do lugar que a DIVERSIDADE ocupa nas relações espaciais, ambientais e afetivas nos territórios urbanos e, essencialmente, de sua força transformadora, capaz de produzir cicatrizes profundas ou pactos estruturantes, não há como não considerar a DIVERSIDADE como o Personagem, com “P” maiúsculo, desta era!

Ter, seja enquanto cidadão, enquanto profissional, ou ainda enquanto agente no território urbano, a capacidade de lidar com a infinidade de referências e repertórios, de escolhas e de valores, na contemporaneidade, deverá ser, cada vez mais, mote de nossa atenção, reflexão e disponibilidade cotidiana. 

Estar no mundo, enquanto um ser político, responsável pela realização de seu compromisso civil e profissional, corresponde essencialmente à necessidade de conviver com a nossa ignorância, com o exercício de lidar com o desconhecido, com a velocidade de transformação das coisas e, ao mesmo tempo, predispor-se ao aprendizado, ao exercício do não preconceito, ao desejo ou no mínimo tolerância à coexistência, ao movimento vital de querer e saber fazer perguntas…

Dentro deste contexto pautado pela DIVERSIDADE, como materializar um senso de coletividade visando abordar a infinidade de oportunidades em políticas públicas, modelos de negócio, inteligência artificial, desenho e projetos qualificados, normatização, boas práticas empresariais, visando alcançar condições de efetiva melhora na qualidade de vida das pessoas que vivem sobretudo nos ambientes urbanos na atualidade?

Encontrar o significado e o valor do interesse coletivo conduz para uma necessária mudança de mentalidade, capaz de tangibilizar questões aparentemente distantes dos diversos segmentos da sociedade, mas que, na prática, correspondem a fatores de influência direta na qualidade de vida das pessoas, no valor monetário da terra, no enfrentamento das desigualdades, no sentimento de pertencimento e de cidadania, nas questões de segurança, dentre tantos outros aspectos.

Urbanizar uma favela, por exemplo, não resulta em uma melhor qualidade de vida de seus moradores. Mas também garante a irradiação, para um raio bem maior, de condições de qualificação ambiental, econômicas, socioculturais, de suas infraestruturas, segurança, integração e inclusão, da paisagem urbana. Com isso, tal urbanização certamente agrega valor para além de seus limites, atingindo sua área envoltória, sua vizinhança ampliada, tantas vezes demarcada por muralhas delimitadoras de fronteiras tão profundas.

Afirmar isto parece tão óbvio, não? No entanto, será que a percepção do efeito positivo e em cascata de uma ação como essa de urbanização ou reurbanização de uma favela pertence à grande maioria desta população tão diversa que coabita o mesmo espaço e, ao mesmo tempo, os infinitos lugares e não lugares que constituem as cidades?

Ações realizadas pela sociedade de uma forma geral — através de suas mais diversas representações civis, públicas e, também, empresariais — para reurbanização de favelas, por exemplo, seria uma medida mitigatória para a concretização de possíveis modelos de acordos e colaborações público-privadas, visando monetizar (com “M” maiúsculo) e valorizar (com “V” maiúsculo) a terra urbana. Seria uma maneira concreta de objetivação de contrapartidas, viabilizando receita e execução de serviços, por um lado, e, por outro, apontando para uma perspectiva de mudança de mentalidade a partir da percepção das pessoas a partir das transformações realizadas.

Dentre esses modelos de acordos colaborativos público-privados, o efetivo incentivo a propostas de manifestação de interesse provenientes do privado — seja ele uma organização civil, um coletivo, uma empresa, uma pessoa física — para requalificação dos espaços urbanos, dentre eles favelas, áreas livres, bairros, logradouros, parques, praças, edifícios institucionais, mostra-se como uma grande oportunidade para as cidades contemporâneas. 

A partir de uma prática colaborativa continuada, novas oportunidades de qualificação dos espaços públicos ou de uso público podem ser multiplicadas, garantindo, ao mesmo tempo, a qualificação da cidade e o sentimento de pertencimento e, portanto, de cidadania, ou, em outras palavras, de respeito ao coletivo, por parte da sociedade como um todo.

É nesse contexto que a investigação que vimos por longa data trilhando em nossa atividade enquanto profissionais e enquanto cidadãos, apostando na possibilidade de construção de vínculos entre representações da sociedade civil, entre as pessoas que compõem a sociedade e entes públicos faz-se promissora.

A perspectiva de buscar instrumentos capazes de fortalecer a percepção de VALOR do COLETIVO, sejam eles jurídico-urbanísticos, econômicos ou metodológicos, que correspondam a um efetivo processo de “ganha-ganha” entre todos os envolvidos é o caminho de reflexão que proponho inaugurar a partir deste diálogo que ora se inicia com vocês!

Saudações Polifônicas!!!

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Arquiteta e urbanista pela FAUUSP, mestre pela FFLCH (Filosofia, Letras e Ciencias Humanas), membro do Conselho Municipal de Politica Urbana (CMPU) e do Conselho de Proteção da Paisagem Urbana (CPPU). Prêmio Top Imobiliário Estadão — Luis A. Pompeia — Pensador de Cidades — 2023–2025.
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