O semáforo vivo

4 de fevereiro de 2025

A população necessita irremediavelmente atravessar ruas

Estamos na década de 70. O cenário é Brasília.

Não tinha semáforo.

Frente à calamidade do tráfego, surge, em 1971, a ideia do semáforo como solução. Foi-se logo ao Rio de Janeiro visitar Lucio Costa e perguntar o que ele achava da ideia. Ele aprovou (ainda bem), e o assunto não saiu mais de pauta.

O primeiro semáforo da capital foi inaugurado em 23/10/1971, em Taguatinga. Os semáforos do Plano Piloto foram prometidos para o natal daquele ano. Houve estudos, discussões, o Detran abriu concorrência, anulou concorrência, começaram as obras, as obras foram interrompidas etc.

Em meados de 1974, vieram os semáforos na L2 Sul e no Eixo Monumental. No entanto, na W3 Sul, a mais mencionada durante todo esse processo por ser movimentadíssima, só começaram a ser instalados no natal de 1974.

E até que se instalassem os semáforos, como se enfrentava o problema? Com guardas de trânsito – os semáforos vivos! –, que suscitaram o texto delicioso da seção Carta dos Leitores do Correio Braziliense de 30/07/1971, que reproduzo aqui:

“Senhor Redator, da janela do meu edifício avisto a Av. W3 cada vez mais absorvida pelos inúmeros veículos e pela população que necessita irremediavelmente atravessar ruas. É impressionante quão premente é a necessidade de atravessar ruas e nelas transitar com veículos de tôdas as marcas: importados, nacionais, hidramáticos, de 3, 4 ou 5 marchas, feios ou bonitos. Para conter esta avalanche, para coordenar tudo isto, escolheram um rapaz que está prestando o serviço militar ou simplesmente é membro do efetivo da Polícia Militar do Distrito Federal. Disseram que êle seria o ‘Semáforo Vivo’, glória concedida a poucos humanos. Não são todos os que poderão dizer: – dos 20 aos 30 anos fui semáforo. Dei passagem a mais de um milhão de seres desprivilegiados que andam a pé e a mais de um bilhão de burgueses motorizados. Algum que tiver mais sorte poderá mesmo se gabar: durante os doze anos que fui semáforo, dei passagem a três Rolls Royce. Talvez até mesmo se lembre das côres: Verde Pálido, Prata Metálico e Doirado Lacrimejante (informações técnicas obtidas em profundas pesquisas). E certamente terá dado passagem a êles. Semáforo humano não tem coragem de parar Rolls Royce. Fica parado, apatetado, olhando, olhando, e pensando… Neste particular os sofredores são os Gordinis e os ‘Fuscas’. Existem tantos… Mas voltemos ao princípio da escalada. Os semáforos humanos são uns sofredores, assim como são sofredores os por êles servidos. O homem não pode ter a eficiência de uma máquina. Pelo menos nêste aspecto, não. Mas o pior talvez não recaia sôbre a população, mas, sôbre o próprio guarda de trânsito. Se não fossem semáforos vivos, não teria maior problema. As máquinas não sentem o efeito do sol. O guarda de trânsito, autoridade maior da avenida, semáforo calado e eficiente, sente imensa dor de cabeça aí pelas cinco, quando o capacete começa a pesar como chumbo em sua cabeça, que de tanto sol de sertão desistiu de pensar em muita coisa a não ser multar um ou dois para matar o tempo. Daí deriva (e não os culpo) que alguns se esqueçam de certas normas ditadas em seu curso de aperfeiçoamento, e urrem nos ouvidos de algum chofer descuidado. Proponho, Senhor Redator, que a bem da cidade e dêstes semáforos vivos, heróicos membros da força policial de nosso país, que sejam os mesmos substituídos por algum desenho moderninho do nosso amigo Oscar Niemeyer. a) Luiz Vasco Pinho Guimarães”

Frente a problemas tão graves que, 50 anos depois, ainda nos assombram, só mesmo um pouco de humor.

Em tempo (1): Essas informações foram coletadas no mundo maravilhoso da hemeroteca digital, que meu aluno Pedro Torres me mostrou.

Em tempo (2): Se você tiver alguma informação sobre o Sr. Luiz Vasco, por favor, escreva para esta coluna!

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

Compartilhar:

Arquiteta, professora da área de urbanismo da FAU/UnB. Adora levantamento de campo, espaços públicos e ver gente na rua. Mora em Brasília. ([email protected])
VER MAIS COLUNAS