Observar as pessoas é um exercício absolutamente transformador.
Uma das coisas fundamentais para se compreender como é utilizado um determinado espaço público, para depois analisar o que a sua localização, o desenho dele e de suas fronteiras têm a ver com isso, é mapear as atividades estacionárias. Isso significa ir ao local, observar seus frequentadores e anotar quem está fazendo o quê, onde, com quem, de que maneira, por quanto tempo. A partir dessas informações, podemos elaborar o famoso e utilíssimo mapa comportamental, bem como uma série de gráficos que, junto com os números da contagem de fluxo de pedestres, nos vão autorizar a falar com propriedade sobre o lugar.
Há uma série de procedimentos para que isso seja feito: elaborar uma planta fiel do local e fazer várias cópias dela; escolher dias convenientes, típicos e com bom clima para o levantamento; registrar de forma sistemática o que se está vendo; organizar e processar a informação coletada. Dá trabalho fazer? Dá, claro. Nenhum estudo sério ocorre sem trabalho, né, gente? Mas vale muitíssimo à pena por duas razões: pelo que o estudo pode fazer por uma cidade melhor, e pelo que o estudo pode fazer por nós, pesquisadores.
Há um importante aprendizado pessoal advindo de um levantamento de campo como esse: aquele que se adquire ao se estar exposto à interação, ao ver e ser visto, e que ocorre por excelência num espaço público. Meus estudantes relatam que precisaram superar a sensação de estar invadindo a privacidade do outro; a tensão de estarem sujeitos a serem abordados pelas pessoas; a timidez de conversar com alguém para pedir informações. Mas todos concluem que vale a pena passar por isso, em benefício de tudo o que se pode descobrir sobre o uso de um lugar e sobre o funcionamento das próprias pessoas.
Quando vamos a campo, buscamos desempenhar a observação não participante, tentar ficar o mais incógnito possível, para não interferir nas práticas que estão ocorrendo, o que é bem difícil, já adianto. A gente sempre vai despertar a curiosidade das pessoas, e às vezes vai incomodar algumas. Umas ficarão olhando, muitas com o intuito de nos intimidar, outras virão conversar conosco. Dá pra lidar bem com a maioria das situações, a gente vai aprendendo com a prática. O que a gente descobre sobre a natureza humana é fascinante.
Meu levantamento na Esplanada dos Ministérios ocorreu logo após uma reportagem do Correio Braziliense ter dito que os ambulantes estavam “ameaçando a escala monumental de Brasília” (suspiro profundo. Vamos combinar que, se uma pessoa com um isopor vendendo marmita embaixo de uma árvore, ocupando não mais que um metro quadrado, está ameaçando a escala monumental de Brasília, Lucio Costa mandou muito mal com o desenho desta cidade, não é mesmo?). A agência fiscalizadora, na esteira da reportagem, saiu atrás de todo mundo, que, obviamente, voltou dias depois. Era natural que os ambulantes me olhassem com cara de poucos amigos e me perguntassem se eu era do governo. Eu expliquei que era da Universidade, e disse qual era o meu propósito, ali. Os ânimos arrefeceram e ganhei até uns sorrisos.
A gente não precisa se explicar, é bom que se diga. Um espaço verdadeiramente público se presta inclusive à atividade de pesquisa de campo. Mas a gente se explica porque a gente é legal, e não quer deixar ninguém desconfortável; porque quer interagir e promover a urbanidade. Porque quer trazer as pessoas para a causa.
Sentada sozinha num banco da praça do D.I, em Taguatinga, onde não tinha mais ninguém, uma estudante viu um homem em situação de rua vir em sua direção. Ela ficou insegura e se levantou, indo refugiar-se na frente de uma loja. O homem pegou sua mochila que estava perto do banco, tirou de dentro dela sua flauta e começou a tocar. “Me senti péssima”, ela relatou depois. “Como eu iria saber?”
Realmente não tinha como saber, e é compreensível seu sentimento. É preciso que a gente se sinta sempre segura. A primeira regra de qualquer levantamento de campo é que ninguém se deve expor a riscos. Experiências como essas, no entanto, nos ensinam muito sobre pré-julgamentos.
A gente vai ver gente relaxada, gente tensa. Gente se encontrando, feliz, e gente discutindo a relação. Gente se achando dona do lugar, e gente que não sabe muito bem se pode ficar ali. Gente que quer claramente estar sozinha, e gente que quer estar perto do burburinho. Mesmo que Jane Jacobs nos mande observar, com a menor expectativa possível, sem julgamentos, vamos formular mil hipóteses, refletir sobre um milhão de coisas.
A gente nunca mais vai ser a mesma pessoa, nem olhar pra nossa sociedade da mesma forma, depois de uma experiência dessas.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.