O muro invisível: como o urbanismo ainda separa Berlim

15 de maio de 2025

Em recente viagem a Berlim, tive a oportunidade de reviver o caso mais emblemático do século 20 onde duas ideologias políticas — o comunismo e o capitalismo — materializaram suas diferenças no espaço urbano. Durante os 28 anos em que foi dividida pelo Muro, entre 1961 e 1989, Berlim não apenas representou uma cisão geopolítica, mas também se tornou laboratório vivo de dois modelos distintos de urbanismo. Essa dicotomia ainda é visível hoje, na malha urbana, nas tipologias habitacionais e até na largura das calçadas.

No setor oriental, sob domínio da República Democrática Alemã (RDA), o urbanismo comunista tinha como objetivo central a coletividade, a monumentalidade estatal e a padronização funcional. Um exemplo claro é a Karl-Marx-Allee, avenida monumental com calçadas largas (até 40m de largura), edifícios simétricos de 7 a 9 andares e grandes vãos entre os blocos — seguindo os princípios do “socialismo real” e das ideias do urbanismo soviético stalinista. As quadras eram amplas, abertas e organizadas segundo o ideal de “cidade-parque”, com zonas de moradia afastadas das vias de tráfego intenso, muitas vezes separando funções urbanas (habitar, circular, produzir, recrear) em espaços distintos.

Por outro lado, em Berlim Ocidental, sob o sistema capitalista e alinhado ao Ocidente, o urbanismo privilegiava a diversidade funcional, o mercado imobiliário e a escala humana. Áreas como o bairro de Kreuzberg foram reconstruídas com foco na preservação da malha tradicional, reutilizando o traçado pré-guerra e promovendo o uso misto do solo. As quadras são menores e mais densas, com fachadas contínuas, calçadas mais estreitas e comércio no térreo — características que favorecem a vitalidade urbana segundo os princípios defendidos por Jane Jacobs. A lógica do capital incentivava a multiplicidade de usos e a ocupação intensiva dos lotes, como forma de valorização fundiária e atração de investimentos.

As tipologias habitacionais também revelam essa divisão: enquanto o lado oriental investia em blocos pré-fabricados do tipo Plattenbau, com apartamentos padronizados e foco na eficiência e igualdade, o lado ocidental apresentava maior variedade tipológica, desde edifícios multifamiliares até pequenas vilas urbanas, muitas vezes marcadas por distinções de classe e diferenciação estética.

A infraestrutura urbana seguia essa lógica: a RDA priorizava o transporte coletivo e o planejamento centralizado da mobilidade, com estações de metrô amplas mas esparsas; já no lado ocidental, havia uma maior articulação entre modais e incentivo ao uso do automóvel, com ruas planejadas para absorver o crescimento do tráfego individual.

Com a reunificação, Berlim tornou-se um palimpsesto urbano. A cidade carrega cicatrizes e contrastes: de um lado, a racionalidade espacial do socialismo; de outro, a adaptabilidade e o dinamismo do capitalismo. Esses traços são hoje objeto de debates sobre identidade urbana, preservação patrimonial e integração territorial.

Assim, Berlim é mais que uma capital europeia — é um testemunho urbano das disputas ideológicas do século 20. Suas quadras, calçadas e edifícios contam, em concreto e asfalto, a história de dois modos opostos de pensar e construir a cidade.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Arquiteta e urbanista, especialista em Gestão de Projetos e mestre em arquitetura pela UFRN. Atualmente é sócia da PSA Arquitetura em São Paulo e da PYPA Urbanismo & Desenvolvimento Urbano em Natal-RN. ([email protected])
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