O mundo é uma tartaruga. E a cidade também.

26 de janeiro de 2024

Diversas culturas antigas na Índia, China, América do Norte trazem em suas mitologias a figura de tartarugas cósmicas como metáforas para o nosso planeta. Por exemplo, nas lendas de criação do mundo das tribos Lenape e Iroquois, a Terra foi gerada como solo e acumulada sobre o casco de uma imensa tartaruga marinha, a qual continuou a crescer até carregar o mundo inteiro em suas costas. Inclusive, muitas tribos nativas da América do Norte, até hoje, se referem ao continente como “Turtle Island”. 

Buscando identificar traços comuns entre as diferentes lendas que ajudem a explicar a escolha da tartaruga como o animal imbuído desse papel mitológico, o antropologista americano Jay Miller apontou alguns atributos a ela geralmente associados – sabedoria, longevidade e perseverança – que bem se prestam à mitopoese.

No “repertório lernerniano” a tartaruga tem também um papel especial. No livro O Vizinho, sobre o qual já conversamos com os nossos leitores, Vita, a tartaruga, é apresentada como “um bicho da melhor qualidade; o bicho de estimação do Gregório.” Esta mascotinha faz a analogia de um dos mais fundamentais conceitos que o Jaime coloca para a boa qualidade da vida urbana, que é a proximidade da moradia e do trabalho; a integração das funções urbanas.

Pelo corolário modernista expresso na Carta de Atenas, são quatro as funções urbanas básicas: três que agrupam as principais atividades do cotidiano – o morar, o trabalhar, o recrear – e o circular, que permite a conexão entre elas. Sob o prisma de um planejamento que entende as cidades como problemas de funcionamento – do um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar –, a aplicação desse corolário levou ao desenvolvimento de políticas que frequentemente materializaram no território zonas majoritariamente monofuncionais. Pensemos, por exemplo, nos grandes conjuntos residenciais nos subúrbios, usualmente com a tipologia da casa isolada no lote, os centros de negócios e centros comerciais, e condomínios industriais.

A metáfora da tartaruga é a antítese dessa segregação, ressaltando o caráter orgânico e de complementaridade da cidade. Diz o livro:

“Vocês já repararam que o casco da tartaruga parece uma colmeia de células.

O casco da Vita representa as várias funções urbanas. O lugar de trabalho, o lugar de moradia, o lugar do lazer, enfim, um imenso abrigo.

Vocês já pensaram no que aconteceria se o casco da tartaruga fosse dividido e separado em lugares distintos. Ela teria que passar o tempo todo juntando os cascos. Ainda mais lenta como ela é. Não há Vita que agüente isso.

A tartaruga é o melhor exemplo de vida e trabalho juntos.”

A estratégia de uso e ocupação do solo está no cerne da forma urbana. Condiciona o cotidiano dos seus habitantes, na medida que distribui no território os endereços de seus desejos e necessidades, assim como as exigências dos deslocamentos entre eles. Um desenho de cidade compacto, onde prevaleça a mistura de usos compatíveis, possibilita uma maior diversidade e sinergia entre as atividades e com frequência se traduz em um ambiente urbano mais dinâmico, sustentável, múltiplo e criativo. Possibilita também encurtar as distâncias, viabilizar economicamente sistemas de transporte público multimodais mais eficientes e robustos, além de diminuir a pressão nas áreas naturais, territórios agrícolas e mananciais. 

A exemplificação disso é o que frequentemente admiramos na ambiência das cidades europeias. Muitos anos atrás eu tive a oportunidade de morar por alguns meses no 5ème em Paris, no apartamento de uma família francesa. Habitar uma outra cultura é sempre uma oportunidade de aprendizado, e não sem os seus estranhamentos. Fazia parte do arranjo da acomodação o provimento do jantar, e a madame que era a chefe da família era soberba cozinheira. Num primeiro momento, contudo, eu achava a geladeira da casa uma “penúria”, com uma meia-dúzia de itens aleatórios. Com o tempo, entretanto, as coisas começaram a fazer mais sentido. A rua na qual o apartamento se situava tinha uma profusão de pequenos comércios. Na esquina, a boulangerie (que, aliás, servia uma galette des rois que merecia um monumento em Paris só para si…), depois a crèmerie, a épicerie, a boucherie… A cada tarde, a senhora colhia frescos ao longo da rua os ingredientes para a refeição familiar, com grande qualidade, variedade e sem desperdícios. E em três cursos!!

Tanto a pequena Vita quanto as grandes tartarugas cósmicas nos convidam a pensar no espaço de suporte, naquilo que fornece a base para que outras camadas da vida possam se desenvolver e se expressar, no planeta e nas cidades. Tanto melhor se ela souber para onde caminhar!

por Ariadne dos Santos Daher

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Com base na experiência de Jaime Lerner e das equipes que com ele trabalharam, o Instituto Jaime Lerner almeja despertar uma consciência positiva sobre o potencial transformador das cidades e seu desenvolvimento sustentável, inclusivo e criativo. ([email protected])
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