A recente decisão da Prefeitura de São Paulo de criar vagas de estacionamento sob o Elevado João Goulart – estrupício urbano que teria sido mais adequado batizar como, por exemplo, “Elevado Memória da Ditadura” – não é apenas um erro técnico. É um gesto político carregado de simbolismo. Revela uma equivocada visão de cidade, centrada no automóvel, numa decisão tomada de maneira abrupta, sem escuta da população ou da sociedade civil organizada.
O argumento apresentado pela gestão municipal para justificar a pavimentação do espaço e a criação de vagas foi o de que pessoas em situação de rua estariam depositando entulhos no local. Trata-se de uma explicação que, além de frágil, escancara uma inversão nefanda de prioridades: diante da presença de pessoas em situação de vulnerabilidade, a solução proposta não é acolher, dialogar e garantir direitos, mas sim asfaltar e colocar carros em seu lugar. Ora, se os entulhos eram muitos e ocupavam espaço, o que dizer do mesmo espaço ser ocupado por automóveis, excluindo todas as demais possibilidades de passagem ou de convivência?
Em vez de intervir com políticas públicas sociais, habitacionais e urbanas adequadas, optou-se por apagar a presença dos “indesejáveis” com concreto; reprimir como se estivesse organizando. Não ignoro que o Executivo paulistano tem feito esforços em favor da recuperação do Centro ou do acolhimento de pessoas em situação de rua. Mas esses esforços podem se tornar obscurecidos por medidas que venham em sentido oposto. No caso do Minhocão, o que era área de circulação humana, de convivência e de mobilidade ativa está sendo visto com ares de local perfeito para estacionamento — como se isso resolvesse o problema da desigualdade social ou da precariedade habitacional.
Quando será que a capital paulista e a população que nela vive irão começar a considerar de maneira séria e ampla ferramentas como o urbanismo social para integrar, aproximar e enfrentar de verdade a violência urbana e o desafio da mobilidade em tempos de mudanças climáticas (para ficar só em dois temas graves e urgentes)? Não é preciso ir longe para ver o que deu certo: Medellín e Bogotá estão logo ali, uma ensinando como reduzir em 97% o índice de homicídios e outra mostrando como a mobilidade urbana pode ser inclusiva.
De volta ao Elevado: o que realmente está sendo “limpo”? Quem está sendo varrido da paisagem paulistana? E mais importante: quem está sendo beneficiado?
A escolha de ceder mais espaço aos carros não é neutra. Estudos e experiências internacionais comprovam que aumentar a oferta de vagas induz ao uso do automóvel, acirra congestionamentos, piora a qualidade do ar e reduz a segurança viária. A própria CET já demonstrou que a retirada do Minhocão teria impacto mínimo no trânsito. O que falta é ousadia política para transformar.
Enquanto cidades como São Francisco e Seul demoliram estruturas viárias semelhantes, São Paulo insiste em estacionar o futuro. É mais fácil asfaltar e dizer que se está “resolvendo um problema” do que encarar as complexidades sociais que um espaço urbano tão simbólico revela.
O episódio do Elevado obriga a perguntar: qual metrópole queremos? Uma capital que expulsa os mais pobres para dar lugar a carros parados ou uma urbe viva, justa e sustentável?
As cidades falam por suas decisões. Temo muito que o lugar onde optei por morar siga esbravejando: “Sou a capital do automóvel, da exclusão, da aporofobia’’. Cabe à sociedade, se quiser ser arquiteta da transformação urbana, reivindicar outra narrativa.
Sérgio Avelleda
Coordenador do Observatório Nacional de Mobilidade Sustentável do Centro de Estudos das Cidades – Laboratório Arq.Futuro do Insper.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.