“Estou chocado com o Brasil visto daqui. Estamos na idade da pedra lascada em relação ao Japão. Educação, limpeza, organização, civilidade, qualidade de vida, funcionamento do básico, respeito, tranquilidade, e por aí vai.”, disse um primo e amigo querido, sujeito de mente privilegiada, enquanto viaja pela terra do sol nascente.
Suponho que o quadro seja ainda mais impressionante ao vivo e a cores, a concretude do que seja um abismo civilizatório.
Sempre pensei na civilização como uma linha de trem com algumas derivações (que retornam ao ramal principal), onde países de maior desenvolvimento econômico e social andam na frente, e os emergentes vêm atrás (a distâncias variadas). Os países pobres continuam parados na estação, ou distantes demais para alcançar qualquer grupo.
A alegoria de uma linha de trem com variantes não poderia estar mais errada, porque se apoia numa ideia de determinismo, filosofia que isenta a sociedade por suas – más – escolhas. É o exato oposto.
Cada sociedade colhe o que planta, e a qualidade do resultado estará diretamente conectada ao cuidado empregado nessa plantação, até o momento da colheita. O que meu querido amigo viu no Japão foi o livre arbítrio, o acordo tácito entre membros de uma sociedade e os sacrifícios, individuais e coletivos, espelhando um estágio civilizatório.
Não há nada aleatório, gratuito ou desinteressado, descompromissado ou isento de responsabilidades nesse resultado.
Tendo refletido, respondi que “eu costumava pensar que fosse a mesma estrada, e a gente só estivesse atrás dos europeus (uma época pouco atrás, recentemente muito atrás), mas eu já estou achando que nós estamos em OUTRA estrada, onde os padrões são outros e o destino também. Pensando sobre cidades, as nossas estão num caminho completamente diferente; outra lógica, outra direção, na verdade, sem objetivo nenhum.”
Já pensamos as cidades brasileiras como as europeias, por um tempo, notadamente até a década de 1960, mais por inércia do que por convicção, até o advento de Brasília, esse “admirável mundo novo”. Um lugar inventado no meio do nada, próximo a lugar nenhum e onde as duas únicas coisas fora de controle são o clima e a gastança (para fazer, e para manter).
Uma cidade que representa, ao mesmo tempo, uma bolha dentro de um país e um universo paralelo, onde edifícios não possuem terreno, e tem o privilégio de não “carregar” áreas acessórias e comuns, relegando à “prefeitura” a responsabilidade pela manutenção de áreas que, em qualquer cidade do planeta, são custeadas pelos condôminos.
É a concretização de uma utopia, onde todos pagam pelo bem-estar de alguns poucos (há 64 anos), mas é, também e ao mesmo tempo, a representação cabal e definitiva de que utopias em forma de cidades não são possíveis sem distorções grotescas, subsídios gigantes, um certo isolamento regional e uma boa dose de tolerância civilizatória.
O que nos traz à nossa realidade atual, na qual gestores e formuladores das regras que movem as cidades, ainda inebriados 64 anos depois, insistem na tentativa de moldar todas as cidades à imagem e semelhança dessa utopia, esse gênio libertado da lâmpada.
Mas o gênio da lâmpada não entende de cidades, nem da dinâmica que gera vitalidade e segurança pública. O gênio não sabe fazer contas. Ele saiu da lâmpada acreditando (e convencendo seus admiradores) que as cidades não precisam pagar por sua infraestrutura, que o transporte público pode ser substituído por uma frota de carros e outra de ônibus, que ter vizinhos é ruim e que o lugar de consumir e de trabalhar deve ser diferente do lugar de morar.
O gênio, sabemos hoje, é dado a arroubos de grandeza e ideias amalucadas. O gênio gosta mesmo é da grandeza dos anúncios e acredita que as intenções se traduzem em resultados automaticamente. Afinal, ele é o gênio da lâmpada, e seus desejos se transformam em realidade.
O que ninguém se perguntou naquela época, e continua não perguntando hoje é: por que o gênio, tão alegre e tão exuberante, estava preso na lâmpada?
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.