O inescapável destino do flâneur paulistano

25 de novembro de 2025

Na minha coluna anterior, brinquei que o inescapável destino de todo flâneur paulistano era pisar num cocô de cachorro deixado por um dono que parece desprezar os espaços públicos.

“Não esquenta, pisar em cocô é sorte”, é algo que escuto desde a minha infância, por outro lado. Agora sou obrigado a concordar. Ou a discordar. Ou ao menos a reconhecer a ironia de ter pisado no cocô daquele artigo, ter ficado fulo da vida e falado que aquele era o inescapável destino do flâneur paulistano. Pois bem no dia em que enviei o texto, eis que outro inescapável destino, este verdadeiramente dolorido, estava à minha espera: um tropeço numa calçada irregular.

Não vou escrever mais um artigo sobre o péssimo estado das calçadas nas cidades brasileiras. Isso todo mundo sabe (e se não sabe, vale assistir este vídeo do São Paulo Nas Alturas). Minha intenção aqui é apenas divagar um pouco sobre as curiosas ironias relacionadas ao ocorrido.

O infeliz incidente aconteceu quando voltava de um mercado perto do trabalho, ao qual fui no horário do almoço para comprar confeitos de chocolate que meu filho mais velho queria colocar no saquinho surpresa que preparava para os amigos da escola (seu aniversário se aproximava).

Minha esposa, ansiosa, queria ter feito logo o pedido pelo comércio eletrônico, “é mais barato e chega amanhã mesmo”, mas eu, entusiasta da vida urbana e das caminhadas pela cidade, relutei. “Não, pode deixar que eu compro lá perto do trabalho”. Que ironia…

Isso porque, vejam só, eu havia acabado de escrever outro artigo para o Caos Planejado, esse falando dos impactos negativos do e-commerce para a cidade, criticando a pressa contemporânea de se obter todo tipo de item o mais rapidamente possível, e defendendo a ida a pé até o comércio mais próximo. Como, porém, defender as caminhadas pela cidade tendo de encarar calçadas que são verdadeiras armadilhas?

E olha que, dessa vez, eu nem caminhava com a cabeça nas nuvens, como tantas vezes. Também não olhava para o chão, é verdade, mas para os tapumes que cercavam o Vale do Anhangabaú (mais um evento particular seria realizado ali…), pensando em qual seria o melhor trajeto para chegar ao meu destino, uma vez que o Vale (um local para pedestres, outra ironia) estava interditado em diversos trechos. Pisei então em falso numa grade de drenagem quebrada (que também poderia ter sido uma tampa de acesso ao esgoto ou cabos elétricos mal colocada ou afundada, um buraco, um degrau fora de lugar ou qualquer outra armadilha do tipo). Resultado: uma bela torção no tornozelo e alguns dias de imobilização, sem poder sair a pé por aí. 

A vida é, pois, cheia de ironias, de forma que até um incidente infeliz envolvendo um tornozelo torcido numa calçada irregular pode render uma história cheia de coincidências. Nem sempre, porém, calçadas irregulares vão render boas histórias (podia ter acontecido com um idoso ou alguém com mobilidade reduzida, com consequências muito mais graves, afinal). E, por isso, às vezes fica mesmo difícil defender que as pessoas caminhem mais em locais não apenas pouco atrativos, mas realmente perigosos. 

No hospital, enquanto aguardava o atendimento e começava a esboçar este artigo, lembrei de um amigo de Brasília que passou uma temporada em São Paulo, mas voltou correndo para sua terra natal, pois estava cansado de todo dia ter medo de morrer atropelado. Diante de motoristas ensandecidos, motociclistas imprudentes, calçadas irregulares e obstáculos de todo o tipo, flanar por São Paulo pode ser mesmo uma aventura um tanto quanto arriscada.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Economista pela FEA-USP, mestre em economia pela EESP-FGV e tem mais de 20 anos de experiência na área de pesquisas e estudos econômicos. Mora em São Paulo e caminhar pela cidade é um de seus hobbies favoritos ([email protected]).
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