O incessante movimento humano de conquista e expansão territorial: resta saber se com ou sem responsabilidade

12 de janeiro de 2024

A reflexão que se propõe versa, a partir de um caso concreto -considerando a longevidade de processos de desenvolvimento urbano – sobre a capacidade e disponibilidade humana ao aprendizado, reconhecimento de erros e busca por tolerância, responsabilidade cidadã e inclusão.

Seriam muitos os temas controversos passíveis de serem analisados a partir deste polêmico projeto que, passados 60 anos, amadurece no aspecto do seu planejamento participativo.

Trata-se do novo Distrito de Ijburg, formado por ilhas artificiais em Amsterdã. Projeto idealizado em 1965 pelos arquitetos Van den Broek e Bakema. Para uns o projeto foi visto como uma aberração, sobretudo do ponto de vista ambiental e fundiário, e para outros como uma jóia da engenharia e da arquitetura.

Em 1996, o governo de Amsterdã decidiu construir um bairro novo em torno do lago Ij, tendo por base o projeto, tido como futurista, desenhado na década de 60. Os oponentes tinham fortes objeções ao esgotamento dos recursos naturais no IJmeer e pediram um referendum que foi organizado em março de 1997. Sessenta por cento dos eleitores foram contrários à construção do IJburg, mas em virtude da baixa representatividade, correspondente a 41% da população, o governo acabou por invalidar o referendum e a construção continuou. Para compensar a perda de valores naturais, uma nova reserva foi construída ao longo do Waterlandse Zeedijk, perto de Durgerdam.

Neste distrito, composto por 7 ilhas, bicicletas e barcos são preferidos aos carros. Os proprietários adquiriram seus terrenos na água por um período de 99 anos. O preço de custo por m² é cerca de metade do preço do centro da cidade. O apelo de viver perto da água e ter a oportunidade de habitar em edificações maiores em virtude do baixo custo foi visto como alto valor agregado por uma parcela da população, sobretudo de jovens e artistas. As primeiras moradias foram entregues em 2013.

Strandeiland IJburg, a mais nova das ilhas, teve início de obras em 2023, e traz como amadurecimento a este processo, após 60 anos de sua idealização, um desenvolvimento democrático para construção de uma ilha verde, social e sustentável. A metodologia inédita na cidade, denominada “DemoS”, vem explorando novas formas de envolvimento dos futuros moradores no processo de desenvolvimento da área.

A equipe de participação é composta por funcionários públicos, residentes, um pesquisador do Instituto TU Delft/MAS (Instituto para o Desenvolvimento de Soluções Metropolitanas de Amsterdã) e mestrandos da MADE (Metropolitan Analysis, Design and Engineering – Programa de Estudos Metropolitanos da Universidade de Amsterdã). Juntos, eles exploram a metodologia participativa para que o processo de desenvolvimento possa ser organizado de forma que dê aos futuros residentes controle e propriedade no desenvolvimento de seu ambiente de vida.

O foco do projeto Beach Island DemoS é, por um lado, desenvolver novas formas de organização no desenvolvimento urbano para aumentar o envolvimento e a apropriação dos cidadãos e, por outro, o projeto analisa como inovações sustentáveis e circulares podem ser aplicadas no desenvolvimento da ilha. Portanto, a equipe de participação contribui para o planejamento em torno dos temas de sustentabilidade, inclusão e coesão social utilizando formas experimentais de participação e novos modelos democráticos e colaborativos.

Segundo o MAS, várias lições podem ser tiradas do projeto. Por exemplo, a demanda por inclusão cidadã foi confirmada e será continuada dentro do desenvolvimento do projeto. No entanto, ainda há progressos a fazer para envolver verdadeiramente todos nos processos políticos.

Os alunos do Mestrado MADE desempenharam um papel significativo no desenvolvimento do projeto. Eles realizaram entrevistas com cidadãos para identificar as necessidades relacionadas ao desenvolvimento do IJburg. Além disso, criaram uma arena pública na qual os cidadãos podem conversar uns com os outros sobre possíveis propostas e onde também podem tomar decisões. Os alunos montaram o chamado Parlamento do Lugar para adultos e crianças, que ainda está em uso.

Estes alunos de mestrado que participaram do projeto Strandeiland DemoS agora colocam em prática suas habilidades e conhecimentos adquiridos. Tendo participado do AMS Startup Booster, eles recentemente começaram sua própria empresa chamada “Container Collectief” que é uma consultoria para desafios locais de sustentabilidade.

Junto com os moradores, eles se envolvem em um processo de design no qual desenvolvem uma visão compartilhada para as áreas urbanas do futuro. Dessa forma, a Container Collectief constrói uma ponte entre as inovações urbanas e os moradores. Ao mesmo tempo, criam apoio para transições sustentáveis.

Enfim, passando por lá para conhecer, confesso que não me agradou a assepsia do lugar, fruto de um planejamento urbano pautado em uma beleza fria, rígida, previsível, sem diversidade, sem surpresas e sem espontaneidade. Também não me agradou a invasão pelo homem, pelo concreto, areia e metal, de um território marinho… submarinho… fluido.

Mas, apesar disto, e considerando que meu olhar latino-americano em nada se assemelha àquele nórdico, pude constatar o sucesso deste processo garantido pela plena e prévia entrega de todas as infraestruturas necessárias e perceber a persistência e a flexibilidade desta sociedade, apta a buscar e revisitar, ao longo de décadas, seus valores, suas responsabilidades enquanto cidadãos e seus padrões de qualidade de vida. Isto, realmente importa e merece a atenção desta nossa porção de mundo abaixo da linha do Equador.

Saudações Polifônicas!

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Arquiteta e urbanista pela FAUUSP, mestre pela FFLCH (Filosofia, Letras e Ciencias Humanas), membro do Conselho Municipal de Politica Urbana (CMPU) e do Conselho de Proteção da Paisagem Urbana (CPPU). Prêmio Top Imobiliário Estadão — Luis A. Pompeia — Pensador de Cidades — 2023–2025.
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