O erro de Raquel

24 de março de 2023

Mais pessoas morreram de Covid-19 depois da difusão das vacinas do que antes delas, nos EUA. Um antivax poderia alegar que a vacina não funciona: se elas vinham para reduzir as mortes, como podem as mortes ter aumentado?

É uma falácia. Há algumas razões que explicam por que mais americanos morreram de coronavírus em 2021 do que em 2020. As variantes, o relaxamento das medidas de isolamento, a recusa à campanha. O relevante não é comparar as mortes antes e depois das vacinas. E sim comparar o que aconteceu com o que teria acontecido sem elas.

Essa comparação, em economia, estatística e outros campos, é chamada de “contrafactual”. Para os EUA, estima-se que as vacinas tenham salvado mais de 3 milhões de vidas. O contrafactual (como teriam evoluído as mortes sem a vacina) traz conclusão diferente do que a simplória comparação no tempo (como evoluíram as mortes antes e depois da vacina).

Falácia parecida surge no debate de economia urbana. A intervenção aqui não é a vacina, mas uma mudança no zoneamento, por exemplo. A teoria econômica prescreve que uma intervenção que amplie a oferta de imóveis combaterá preços de moradia e aluguel. A lógica tem sido criticada com números: só que o mero antes e depois da intervenção. 

A professora Raquel Rolnik, da USP, voltou a dizer que a expansão da oferta não afeta os preços. Disse esta semana nos debates do plano diretor paulistano. Como o antivax, está errada ao ignorar o cenário contrafactual. Sem a vacina, o número de mortes seria ainda maior. Sem aumento de oferta de imóveis, os preços seriam ainda maiores.

Isto é, não basta que os preços tenham subido depois de um aumento da oferta de imóveis para que possamos afirmar que a intervenção não surtiu efeito. É preciso que a evidência aponte que eles subiram mais do que ocorreria se não fosse a mudança.

“Pedro, mas você vai mesmo discutir urbanismo com uma das urbanistas mais renomadas do Brasil?” Não, quero apenas falar de economia, ciente de que o argumento que veicula é popular.

“Onde estão os senhores liberais pra me dizer que aumentou a oferta de metro quadrado de área construída residencial e, portanto, baixou o preço?” provocou a professora. Não é uma questão de liberalismo. Rolnik já insistira na retórica anti-intelectual em recente entrevista à GloboNews: “A lógica do quanto maior a oferta menor é o preço não se aplica ao mercado imobiliário.”

Não há evidência para o que diz Raquel. Afinal, se aceitássemos a ideia subjacente de que aumento da oferta aumenta preços, deveríamos aceitar que a redução da oferta reduziria preços. Por que não defender demolições para que a moradia seja mais acessível? 

Não faz sentido: como poderia ser mais barato alugar ou comprar, para uma mesma demanda, com menos imóveis existentes? A nível de cidade, este seria um resultado excepcional (por exemplo, um cenário em que o aumento da oferta estimula a imigração, e, assim, aumenta preços. Esta e outras hipóteses não estão sendo levantadas).

diversas estimativas de contrafactual, não apenas para fora do Brasil, mas também para cá, sobre a redução dos preços de imóveis após mudanças nas regras de zoneamento, quando elas foram ao sentido de ampliar oferta. Redução, claro, em relação ao que seriam sem as mudanças, não em relação ao que eram antes. Como a vacina, certo?

Estimar contrafactuais não é simples, e os raciocínios envolvidos podem não ser intuitivos. Mas é útil, especialmente se valorizamos a ciência. Perceba que para o resultado é irrelevante que haja investidores privados envolvidos: não é um problema o imóvel ser um ativo, desde que ele esteja ocupado (como costuma acontecer, afinal, se ninguém morar, o investidor não aufere receita).

O debate de economia urbana no Brasil pode melhorar. Queremos mais vacinas.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

Compartilhar:

VER MAIS COLUNAS