Causa enorme espanto a decisão recente do governo federal de reduzir o subsídio para a compra de imóveis usados de 70% para 50% dentro do Programa Minha Casa Minha Vida. Trata-se de um tipo de decisão que coloca Brasília em direção radicalmente oposta às necessidades das cidades brasileiras.
Hoje, por exemplo, inúmeras capitais brasileiras estão intensamente dedicadas a reabilitar suas áreas centrais, uma demanda histórica que ficou exposta após a pandemia do covid-19. A perda de população residente nos centros históricos implica em perda de vitalidade e relevância, obrigando prefeitos a ter que lidar com poli-crises sociais como a moradia precária, população em situação de rua ou até mesmo concentrações de viciados em crack.
É uma conjuntura gravíssima cuja principal resposta baseia-se em conseguir criar uma economia imobiliária que priorize também a reciclagem de prédios, o retrofit, ampliando a visão comum de somente apostar na produção de habitação nova nas bordas urbanas.
Entretanto, é de alta complexidade a implementação desta solução pois implica em equacionar antigas dificuldades fundiárias, facilitar a incorporação em imóveis usados, atração e convencimento das famílias de que morar nos centros possa ser bom, mudando a percepção de degradação.
Porto Alegre, São Paulo, Campo Grande, Rio de Janeiro, Vitória, Belo Horizonte, Salvador, Recife, Teresina, Belém, Manaus, estão debatendo e promovendo meios para regenerar seus centros, seja pela sociedade civil, especialmente associações de comércio, seja por políticas municipais.
Reduziu-se drasticamente o trabalho em prédios de escritórios, as ruas de varejo não atraem mais compradores, ou a insegurança passou imperar. É um contexto desafiador para prefeitos que precisam alocar recursos onde não há moradores e onde as receitas declinam. Reputação urbana e memória coletiva se deterioram velozmente com patrimônios culturais em risco. Estas cidades somadas passam de 31 milhões de pessoas.
O êxito desta frente pode vir a trazer uma nova lógica para as cidades, com perspectivas de fortalecimento econômico, competitividade internacional e comprometimento com a descarbonização.
Tamanha é a urgência desta matéria que foi tratada na transição entre governos e foi apontada como inovação na retomada do MCMV. A Caixa tem promovido encontros para compreender melhor o retrofit. O setor privado começa a olhar para este potencial.
Apesar disso tudo, o lobby do setor da construção civil tem buscado não apenas o aumento do subsídio para novos prédios como também a eliminação da concorrência, dificultando o acesso a imóveis existentes. Alegando que cria empregos ao fazer prédios novos, faz uma chantagem perigosa ao reduzir a variedade do próprio setor, como se a reforma não criasse empregos também, com a geração de melhores externalidades econômicas inclusive.
Desde a retomada do PMCMV, a construção civil tem se posicionado preocupada com o uso do FGTS, por exemplo, como se o recurso fosse de sua propriedade. E agora, em ação veloz, conseguiu mudar uma determinação que seria de suma importância para as cidades brasileiras, suas populações e para inúmeros prefeitos!
Inquestionável que precisamos construir mais, contudo ao anular o setor da reforma, o lobby dá um tiro no pé pois escancara o seu não-compromisso com a inadiável agenda da construção de baixo carbono.
O Ministro das cidades recebeu o setor no dia 27 de setembro e no dia 2 de outubro editou uma Instrução Normativa que tira o potencial de reabilitação das áreas centrais brasileiras. Estamos assistindo um lobby altamente veloz e eficaz, cujas consequências implicam na ampliação das manchas urbanas e na periferização das cidades, disseminando uma geografia humana excludente, brutal e desigual, contraditoriamente subsidiada por políticas públicas de urbanização e de habitação social.
Por causa de uma visão medíocre, mais famílias serão colocadas em territórios com baixo acesso a empregos, oportunidades, serviços públicos e infraestrutura, ao passo que onde estes se concentram, os centros, cria-se entrave institucional para abrigar mais moradores.
A força do lobby da construção civil tem impedido o surgimento de iniciativas de desenvolvimento sustentável e ecológico para a urbanização brasileira, com argumentos semelhantes aos dos anos 70 onde se dizia que era necessário consumir a Amazônia para evitar o “inferno verde”. Bem, o tempo mostrou os erros deste tipo de mentalidade. Já a violência, a desagregação social, e a baixíssima qualidade de vida nas periferias das metrópoles têm mostrado que reciclar as cidades é uma urgência inadiável.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.