O centro de Juiz de Fora

15 de setembro de 2023

Esta é uma história de amor.

Da infância à adolescência, todo final de ano, minha irmã e eu viajávamos com nossos pais, de carro, para ver os avós paternos e a família em Juiz de Fora, nossa cidade natal. Na minha lembrança, o primeiríssimo programa das férias era ir ao centro.

Era pisar lá no dia seguinte de manhã e encontrar alguém… sem combinar! Eu, obviamente, não conhecia as pessoas, mas meus pais, sim. “Chegaram quando?”, “Como está a estrada? Ouvi falar que está péssima, lá pelas bandas de Felixlândia”, “Comeram no Rei do Peixe, em Três Marias?”, “Vi seu pai ontem”, “Como estão grandes, essas meninas!”. Se voltássemos à tarde, encontraríamos uma segunda pessoa, que já se tinha encontrado com a primeira e que já estava sabendo, por ela, da nossa chegada e das nossas novidades. Era impressionante.

A moradia de todos os parentes e amigos gravitava ao redor dessa região que, no meu imaginário (talvez a prefeitura tenha uma delimitação diferente), ia da onipresente Avenida Rio Branco, a oeste, à diagonal Getúlio Vargas, a leste; e abarcava, de norte a sul, nesta ordem, as ruas Mister Moore, Marechal, Halfeld, São João e Santa Rita. Ruas com nomes! Eu adorava isso e me ocupava de aprendê-los na sequência.

Nesse coração da cidade havia tudo o que se pensasse, de remédio a pijama de malha, de banco a correio, de maço de couve a eletrodoméstico, de bar a cinema, de moradia a cartório. Tudo parecia muito perto. Deslocar-se caminhando — por lá, de lá e para lá — era a coisa mais natural do mundo (e, ao mesmo tempo, sobrenatural, se você é uma criança criada em Brasília, mesmo que lá tenha um monte de prédios deliciosamente modernistas).

O centro de Juiz de Fora não tinha apenas tudo. Tinha todos. Velhos, adultos, jovens, adolescentes e crianças, gente sozinha ou acompanhada, pessoas as mais variadas, deslocando-se pelos mais diferentes motivos, fazendo o que as gentes fazem de melhor, ser uma atração em si, ao despertar nossa atenção, e exercitar a cortesia, ao puxar um papinho numa fila de caixa ou ajudar a achar um endereço. Ir ao centro não era só resolver coisas práticas, fazer a feira ou um exame de sangue: era “ver as modas” e o movimento.

A estrela, claro, era a Rua Halfeld, símbolo do centro, e seu sinônimo. Ir à Rua Halfeld e ir ao centro eram a mesma coisa. Era a primeira rua para pedestres que eu conheci, sem que eu soubesse o que era isso. Um calçadão desenhado por pedras portuguesas brancas e vermelhas, ladeado por uma infinidade de lojas no térreo.

Uma rua só para gente, e para gente em movimento, sem um único lugar para sentar (mas isso só ficou claro depois), sem carros, onde os pais não ficavam tão preocupados em segurar sua mão. No meio dela, um trecho se ampliava lateralmente, e nosso olhar encontrava o prédio do Cine Teatro Central, recuado, fechando a perspectiva.

Apesar de as ruas paralelas serem longas, podíamos passar de uma à outra sem ter que ir até seu final, ou voltar para seu começo, graças às galerias. Ai, ai… as galerias! Outro elemento incrível que eu vi primeiro ali. Passagens cobertas, cheias de lojas, onde a gente se refugiava quando chovia, cada uma tendo uma identidade própria. Não eram apenas espaços de conexão: eram espaços complementares às ruas, que traziam suas próprias surpresas e auxiliavam na nossa orientação.

De vez em quando a gente olha pra trás e tenta entender o que nos fez fazer certas escolhas, ter certos pendores, certos amores. Eu me pergunto o quanto o centro de Juiz de Fora tem a ver com o meu interesse por cidades, por espaços públicos, por gente, e o quanto ele é meu parâmetro absoluto de urbanidade. Hoje eu consigo reconhecer todos os atributos — globais e locais — que esse lugar tem e que o fazem ser o que é, como espaço público bem-sucedido, feito inteiramente para o uso cotidiano. Variado, vivo, fascinante.

O centro de Juiz de Fora me viu crescer. Passar da criança que tem lá uma das lembranças mais antigas — a de se ter perdido da mãe, aos 5 anos —; à adolescente que comprava discos e fez amizade com um vendedor de loja de roupas; até a adulta que vai com seu celular tirar foto de tudo o que vê, para depois mostrar aos alunos. Eu mudei, mas ele teve a elegância e a generosidade de se manter igual em sua essência. Não se deslocou, com o crescimento da cidade, para eu não me sentir deslocada, para eu não perder uma das principais referências da minha vida. Mais do que voltar para ver os meus, volto a mim mesma e à minha história, toda vez que venho aqui.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Arquiteta, professora da área de urbanismo da FAU/UnB. Adora levantamento de campo, espaços públicos e ver gente na rua. Mora em Brasília. ([email protected])
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