“Papai, ele devia fazer no banheiro, né?”, comentou meu filho mais novo, em processo de desfralde, ao ver um cachorro fazendo cocô na calçada logo em frente de casa. No que expliquei que os cachorros, ao contrário de nós, não utilizam o banheiro das casas, fiquei com receio de ter dado a entender que o banheiro dos cachorros era, pois, a própria cidade…
No caminho para a escola, um verdadeiro campo minado de cocôs de cachorro, lembrei do artigo “A cidade dos cachorros“, do Mauro Calliari, no qual ele comenta que os pets estimulam as pessoas a ocuparem os espaços públicos (ótimo!), mas que isso também pode trazer consequências negativas para as cidades, especialmente nos casos em que as fezes dos cães não são recolhidas por seus donos.
Dos cocôs de cachorro espalhados pelo nosso caminho, eis que brotava este artigo: o que leva, afinal, alguém a simplesmente deixar as fezes e urina dos pets empesteando a vizinhança?
Lembro bem dos cocôs de cachorro espalhados pelos quintais da minha infância, quando também havia cocôs nas calçadas, é verdade, mas de cães sem dono, vira-latas vadios que vagavam a esmo pelos bairros. Hoje esse tipo de cachorro praticamente não existe mais. E as pessoas trocaram os antigos quintais por apartamentos em condomínios, onde é simplesmente inimaginável uma cena de cocôs de cachorro espalhados pelas áreas comuns.
Ou conseguem imaginar um dono deixando seu cachorro fazer cocô e xixi ali no hall do elevador? Ainda que seja no elevador “de serviço”, vá lá, conseguem imaginar? Pois eu, que vivo em uma casa antiga sem recuo frontal, em uma rua quase completamente dominada por prédios, me deparo praticamente todos os dias com cocô e xixi de cachorro bem na porta de casa. O futum, que nos piores dias de verão me obriga a manter a janela da sala fechada, não deve alcançar os andares dos prédios recuados ao redor, é claro.
No que poderia ser encarado como simples desleixo, vejo mais um sinal da lógica de condomínio que tanto mal faz às nossas cidades. Para muitos dos que vivem enclausurados, afinal, a cidade parece não ser muito mais do que um simples banheiro para seus queridos pets. Se uma cena de pessoas passeando com cachorros em ruas dominadas por grades, muros e câmeras de vigilância soa como um último resquício de urbanidade, ela também pode revelar essa face do espaço público como terra de ninguém, um local sem regras, desprezado, em oposição ao condomínio, que deve permanecer sempre limpo e asseado.
Não raramente observo pessoas que até recolhem as fezes dos cachorros, mas não fazem qualquer esforço para desinfetar a calçada em que seus cães acabaram de fazer xixi. Tenho certeza que essas mesmas pessoas ficariam horrorizadas caso alguém fizesse o número um bem na entrada do seu condomínio. “Que absurdo! Que falta de educação! O Brasil não tem jeito!”.
Pois é. E eis que na volta para casa naquele mesmo dia me deparo com o inescapável destino de todo flâneur paulistano: observando a cidade, o vai e vem das pessoas e seus pets, a cabeça perdida nas reflexões para este texto, acabei pisando no cocô de um cão deixado na calçada por uma besta. Fulo da vida, em uma cidade cada vez mais dominada por carros e condomínios horríveis, me veio à mente um diálogo semelhante ao que abriu este artigo, mas previsto para acontecer em um futuro não muito distante, numa São Paulo com ainda mais cachorros do que crianças, meu filho conversando agora com meu neto.
“Papai, o que é a cidade?”
“A cidade? Hmmmmm… A cidade é esse lugar entre os prédios altos, fora dos condomínios, onde os carros passam e os cachorros cag…, quero dizer, fazem cocô.”
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.