Ô abre alas, que eu quero passar!

5 de julho de 2023

Queria andar por aí sendo reverenciada, ao invés de andar com medo e ter que pedir passagem.

Há anos venho pensando como a hostilidade das pessoas que estão dirigindo com as pessoas que estão caminhando só é possível pois há uma enorme falta de consciência e informação somadas a cultura de “ódio à pobreza” — a aporofobia — uma vez que andar a pé está associado a ser pobre. 

Aporofobia significa aversão, medo, desprezo e rejeição a pessoas pobres. É um neologismo juntando as palavras gregas áporos (pobres) e fobos (medo). Ganhou visibilidade e foi difundida recentemente pelo padre Júlio Lancelloti que até levou nome de lei federal para proibir estruturas de arquitetura hostil, aquelas que o único objetivo é que as pessoas não possam estar naquele espaço.

“Ai, ai, que bom

Que bom, que bom que é

Uma estrada e uma cabocla

Cum a gente andando a pé

Ai, ai, que bom

Que bom, que bom que é

Uma estrada e a lua branca

No sertão de Canindé

Artomove lá nem sabe se é home ou se é muié

Quem é rico anda em burrico

Quem é pobre anda a pé”

Estrada de Canindé, Luiz Gonzaga

Todas as pessoas já passaram por humilhação e desaforos só por estar a pé. Como ficar no meio fio esperando e esperando, sem ninguém dar passagem para atravessar, ou ao estar atravessando a rua em uma esquina receber buzinaços irritados de alguém no volante como se você fosse um obstáculo e algo menos valioso que está atrapalhando a passagem. 

Declaro com convicção que não existe nada mais absurdo do que a naturalização desse tratamento! E nem mais perigoso, afinal em últimas consequências os números de mortes por atropelamento no Brasil são altíssimos, sendo inclusive a principal causa de morte de crianças de até 14 anos. 

Precisamos instituir urgentemente a reverência a quem está a pé!

Sabe aquela coisa de tirar o chapéu com admiração e deixar passar em segurança? Isso mesmo, imagino as pessoas nos seus veículos reverenciando quem está a pé, e por trás dessa reverência uma grande mensagem de gratidão, que diz:

“Obrigada pela sua coragem, bravura e disposição de caminhar na cidade. 

Obrigada por fazer com que haja menos veículos na rua e seja melhor para o meu deslocamento. 

Obrigada por não poluir o ar e beneficiar a todas as pessoas. Diminuindo as doenças e morte por poluição do ar e até mesmo desacelerando o aquecimento global. 

Obrigada pelo seu corpo e presença na rua fazendo com que a cidade seja mais segura e mais vibrante, garantindo a manutenção da vida nas cidades.

Obrigada por se manter ativa e deixar o sistema de saúde mais livre.

Obrigada por caminhar onde muitas vezes parece impossível e manter os comércios nos bairros.

Obrigada por estar a pé!” 

Essa mensagem da reverência também deve vir acompanhada de um grande pedido de desculpas por tudo que está gerando de negativo ao estar em um veículo motorizado e garantindo que irão sempre dar passagem e nunca fazer mal a uma pessoa caminhando. 

As primeiras que seriam reverenciadas seriam crianças, mulheres, pessoas idosas, que já são maioria caminhando. Elas que estão habitando e vivendo a cidade diariamente e já deveriam estar recebendo esse reconhecimento pela sua contribuição coletiva com a cidade, a sociedade e o planeta. 

Como a gente está longe disso, até pensei em como começar a criar essa cultura. A cada pessoa a pé passando deveria soar uma sirene dentro do veículo ou do capacete de quem está motorizado para desacelerar, abrir o caminho, assim como se faz com ambulâncias. Colocando as pessoas que estão caminhando no lugar que merecem, como alguém que está salvando vidas nas cidades.

Isso deveria até ser indicador de desenvolvimento social, ou seja, a frequência que pessoas em veículos se comportam com respeito e reverência com pessoas a pé, indica como a sociedade está mais ou menos desenvolvida.

Mas enquanto isso não vem de fora, eu mesma imagino essa reverência na minha cabeça a cada vez que atravesso a rua, e caminho orgulhosa e consciente do meu impacto! Convido você a se imaginar sendo reverenciada também, eu sei que é difícil, mas só assim para continuar caminhando e lutando pelo caminhar.

Texto de autoria de Letícia Sabino.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Caminhante. Mestre em Planejamento de Cidades e Design Urbano pela UCL em Londres. Fundadora e Diretora do Instituto Caminhabilidade. ([email protected])
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