Ninguém merece brincar com pneu

11 de outubro de 2024

Se não tem em parquinho de rico, não tinha que estar em parquinho de pobre.

Várias vezes escutei críticas ao se propor coisas muito boas em bairros de pessoas de baixa renda ou em situação de vulnerabilidade social. “Elas não estão acostumadas com coisas muito boas, isso aí já resolve”; “Não vale à pena, elas vão depredar”; “Elas não vão dar valor, seria um gasto desnecessário.”

Sem o menor constrangimento, um entrevistado uma vez me disse que a solução para determinado lugar seria colocar um piso muito nobre, para afastar as pessoas em situação de rua: “Elas vão se dar conta de que isso aqui não é para elas”.

(Às vezes eu tenho que fazer um esforço enorme para me manter impávida frente a declarações como essa, pelo bem das entrevistas. Acho muito importante conhecer o pensamento de diferentes grupos sociais, ver o melhor e o pior da pessoa transparecendo para, assim, entender mais o Brasil. É duro, mas é didático.)

Me pergunto se o que está por trás desses depoimentos é a crença em que essas tais pessoas estão tão acostumadas ao pior que a cidade tem para lhes oferecer que não saberiam lidar com uma rua bacana, um espaço público bem cuidado, mobiliário e equipamentos de qualidade, bonitos. Que elas naturalizaram tanto a precariedade, o improviso, o descaso, que acham que a vida é assim, será sempre assim, que não merecem coisa melhor. Que elas reconhecem seu lugar no fim da fila da dignidade urbana, estão resignadas e aceitam qualquer coisa.

Se isso tem algum fundo de verdade, é muito preocupante. É justamente nos lugares mais carentes onde se deve fazer o desenho urbano mais exemplar. Essas pessoas, como todas as outras, gostam de descansar, socializar, jogar, se divertir, passear, e elas farão isso com muito mais vontade e alegria em lugares bem-feitos, confortáveis, seguros e interessantes.

Para isso, é preciso oferecer muito repertório bom, usar a criatividade, adotar as melhores práticas para o desenho dos espaços públicos, implantá-las e, claro, mantê-las. Ao saber que um outro mundo é possível – não no bairro dos ricos, mas na porta da nossa própria casa – a gente tolera menos a mediocridade e o desrespeito, e começa a cobrar ações de melhoria. Ter consciência de que a gente merece mais nos faz amadurecer como cidadãos, nos torna mais críticos, mais exigentes.

É por isso que toda vez que eu vejo um parquinho com pneu eu tenho vontade de chorar.

Resolve-se fazer um local para as crianças brincarem, e a matéria prima é pneu? Por quê? Porque já estava ali, mesmo, jogado, não custou nada? Não dava para criar brinquedos, ou um mobiliário divertido, com materiais de verdade? Então se quer fazer uma coisa para as pessoas, atender às suas necessidades de descanso e lazer, e o que se usa para isso é algo que o automóvel – repetindo: o automóvel – descartou?

Não serve mais nem para um carro, e eu vou dar para as crianças? É sério?

Não há nenhum argumento que me convença de que isso é bom. Ou legal. Ou que é provisório. Ou que era o pneu ou nada. O pneu, para mim, é a mais perfeita materialização do “pra essa gente, qualquer coisa serve”.

(Em tempo, estudar a experiência de Medellín, na Colômbia, ajuda a refletir sobre esse tema. O Caos Planejado tem bastante conteúdo sobre isso.)

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Arquiteta, professora da área de urbanismo da FAU/UnB. Adora levantamento de campo, espaços públicos e ver gente na rua. Mora em Brasília. ([email protected])
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