Nem sempre dinheiro é o bastante (quando a visão importa mais que o dinheiro)

29 de fevereiro de 2024

Paris é, para além de uma das mais belas cidades do planeta, o centro gravitacional de uma região metropolitana, chamada por lá de Île-de-France. O “quadrante” nordeste da região metropolitana é Seine Saint-Denis, região com 236 km². e 40 “comunas” (cidades, ou distritos). Seine Saint-Denis tem 3 sub-regiões (arrondissements), Saint-Denis, Bobigny e Raincy, com pouco mais de 1,6 milhão de habitantes e uma densidade (bastante baixa) de 6,8 mil pessoas/km2.

Seine Saint-Denis é, também, a região mais pobre da região metropolitana, com taxas de desemprego superiores a 10% (e o dobro disso no arrondissement de Saint-Denis). Cerca de um terço dessa população vive na pobreza, e 40% de todas as moradias da região são classificadas como de “baixa renda”.

O arrondissement de Saint-Denis, por sua vez, tem uma densidade mais razoável, na casa das 9,5 mil pessoas/km². nos seus 47 km2, e uma população na casa dos 450, 460 mil habitantes.

O arrondissement de Saint-Denis é conhecido, sobretudo, pelo Estádio da França, o icônico estádio de futebol construído em 1997 para a Copa do Mundo de Futebol. E esse estádio é um daqueles que ninguém esquece, porque foi lá onde, mais uma vez, assistimos ao time brasileiro sair de casa todo faceiro, cantado em verso e prosa e favoritíssimo para trazer mais um “caneco para a prateleira”. 

Até o otimismo substituir a prudência e achar Zinédine Zidane pela frente, entregando à França o seu primeiro título. Lamentos e teorias à parte, o caneco ficou em Paris.

Saint-Denis era, até meados do século passado, uma pequena cidade à moda francesa, com um pequeno núcleo urbano e seu centro institucional, com basílica, sede do poder local e outros símbolos presentes (comércio local, parque, praças, cemitério, escolas).

O vazio rural entre Paris e Saint-Denis veio, ao longo do século 20, sendo preenchido por indústrias e aproveitando a proximidade dos aeroportos de Le Bourget e Charles De Gaulle. E foi bem até a década de 1970, quando as fábricas de automóveis, as siderúrgicas e as indústrias associadas começaram a migrar para os países asiáticos com mão de obra mais barata e menos restrições legais e ambientais, provocando a decadência e o esvaziamento da região.

Os organizadores da Copa foram, portanto, inteligentes ao direcionar investimentos para uma transformação planejada da região, escolhendo Saint-Denis para a construção da principal “âncora” da Copa, o Estádio da França.

Como não são bobos nem nada, se tem uma “âncora” desse porte (e com a enorme visibilidade provocada pela Copa), precisa também ter metrô, redes de água e coleta de esgoto, urbanização de ruas e calçadas, parques, praças, mais escolas e equipamentos de saúde.

Na onda da revitalização, produziram um arcabouço regulatório legal e urbanístico estimulando a construção de hotéis, comércio, serviços e edifícios corporativos, para que empresas se sentissem estimuladas a mudar suas sedes para a região. Com essa roda girando, a demanda para moradias e mais densidade na região era apenas uma questão de tempo e publicidade.

O que dependeu do poder público veio em tempo, e estava (quase) tudo ali, prontinho para a abertura da Copa. Com o tempo, vieram também as apostas do mercado imobiliário e, em algum tempo, mais hotéis, comércio e serviços, centros comerciais (tipo shopping centers) e sedes de empresas (estatais, inclusive). Os empreendimentos residenciais vieram no seu tempo.

Mas, a despeito das sedes de empresas, dos centros comerciais, da infraestrutura e do metrô, a profecia não se realizou, e os funcionários não acompanharam as empresas que mudaram suas sedes para Saint-Denis, permanecendo morando onde já moravam. As empresas que vieram tinham vagas executivas e mais qualificadas, e a população de baixa renda que já habitava a região não viu ofertas de emprego nas empresas recém chegadas.

O resultado são funcionários de maior poder aquisitivo transitando, de suas casas em Paris, para o emprego em Saint-Denis, enquanto os funcionários de baixa renda que já moravam em Saint-Denis continuaram se deslocando diariamente para seus empregos (de baixo valor agregado) em Paris.

O resultado foi, ao contrário do previsto, aumento do fluxo de carros e ônibus e intensificação do uso do transporte público (basicamente nos horários de pico), com intenso deslocamento das populações local e parisiense. Nada de “cidade de 15 minutos”, nada de uma vida feita a pé.

Como consequência desse desarranjo, muito desemprego, muita violência, tráfico de drogas a todo vapor a sem qualquer constrangimento. Uma degradação geral, potencializada pela concentração de imigrantes que, somados à população de baixa renda (já com altos níveis de desemprego e baixa escolaridade), criam uma pressão que ameaça expulsar, de volta para Paris ou para outras regiões, as empresas que escolheram Saint-Denis na promessa de um novo vetor urbano seguro.

O poder público tratou o investimento para a Copa como uma espécie de “bala de prata”, acreditando que os investimentos e a visibilidade bastariam para que a engrenagem ganhasse uma dinâmica própria com moto contínuo e capacidade de se auto ajustar.

Agora, com as Olimpíadas de 2024, o poder público propõe a mesma fórmula, com investimentos previstos de 4,5 bilhões de euros para melhoria da infraestrutura, construção de equipamentos esportivos, moradias para atletas (2.800, depois convertidas em moradias de baixa renda) e revitalização de complexos habitacionais.

Numa frase atribuída a Albert Einstein, “loucura é fazer igual e esperar resultados diferentes”. Não acredito que a frase seja mesmo do gênio (que tinha coisas mais importantes a pensar), mas a força da afirmação permanece.

Porque repetir a fórmula do que já não atingiu os objetivos em 1998?

A entidade “Olympics 2024 Vigilance”, uma espécie de “watchdog”, vê o direcionamento dos investimentos para a construção dos equipamentos esportivos, em áreas hoje ocupadas por complexos habitacionais degradados, como uma forma de “limpar” a região da população de baixa renda e dos imigrantes, que serão deslocados para novos complexos residenciais (de baixa renda), ainda mais longe.

Abstraindo da discrepância entre a infraestrutura francesa e a brasileira, em algum momento as chagas parecem ser comuns. Parecem derivar de desajustes como, por exemplo, o fato da moradia e do emprego (equivalente) nunca estarem numa mesma região; ou um outro tipo de desajuste na qual a ocupação urbana permite (ou incentiva, de alguma forma) a segmentação geográfica das moradias por faixa de renda (como se fossem “guetos” para cada faixa de renda).

Fosse questão de vontade e orquestração política, de investimento e infraestrutura, Saint-Denis estaria resolvida em 1998 mas parece haver alguma coisa a mais: talvez uma orquestração mais ampla, diretrizes e metas objetivas e claras, com ajustes constantes, equilibrando o mix de empreendimentos de forma que não seja possível a criação de guetos por faixa de renda, sem o comprometimento da atratividade para o mercado imobiliário (mas sem uma “mão forte” controlando e disciplinando tudo, ao mesmo tempo a maior tentação de todos os gestores municipais e o maior risco ao mercado imobiliário).

Prédios de usos diversos, e com tipologias diversas, para  (algumas subsidiadas), forçando a uma diluição das diversas faixas de renda entre si, impossibilitando qualquer estigma ou a criação de guetos, e com população combinada com capacidade de consumo para fazer girar a roda que vitaliza o comércio e os serviços, e os empregos locais.

Talvez o negócio não seja separar, mas juntar e diluir as diferenças. 

E com liberdade.

Compartilhar:

VER MAIS COLUNAS