Natureza e Cidades: harmonia ou conflito? A escolha é (em certa medida) nossa.

26 de julho de 2024

O ano é 1972, e estão em curso as obras do que veio a se consolidar como um dos espaços mais emblemáticos de Curitiba, o Parque Barigui. Na época, a cidade tinha apenas o Passeio Público em sua região central, construído ainda no século 19 e, com uma população de pouco mais de 600.000 habitantes, uma disponibilidade de apenas 0,5m2 de área verde por residente. 

Também no início dos anos 70, o Governo Federal havia disponibilizado recursos importantes para que as cidades tratassem sua drenagem. Adotando um caminho distinto da lógica então prevalente de se canalizar os cursos de água urbanos como medida de contenção de cheias, Curitiba olhou para suas principais bacias hidrográficas – Belém, Barigui, Iguaçu -, estudou seus meandros, mapeou as áreas verdes remanescentes e abraçou o novo paradigma de manter ao máximo possível os rios correndo em seus cursos naturais, proteger suas margens da ocupação urbana, preservar a vegetação e abrir espaços para áreas de acumulação de chuvas de maior intensidade (lagos e demais áreas lindeiras alagáveis). Somou-se a esse conjunto de estratégias de macrodrenagem um programa singelo de infraestruturas e equipamentos e se inaugurou um sistema de parques públicos – dos quais o Barigui é representante – que, decorridos mais de 50 anos, seguem servindo bem a cidade não só como solução de drenagem, mas como corredores de biodiversidade e espaços privilegiados para o encontro, lazer e descanso da população. Os anos seguintes testemunharam a perseverança nesse paradigma e a cidade conta hoje com quase 50 parques e bosques e, apesar da população ter mais que triplicado no período, a disponibilidade de área verde por habitante na capital paranaense decuplicou, ultrapassando os 50m2.

Nicolau Klüppel, um dos profissionais que mais contribuíram para a concepção e materialização das soluções de drenagem da metrópole curitibana, dizia que canalizar um rio é construir um “tobogã” para as enxurradas, acelerando os picos de cheia. A lógica da natureza, dizia, ao contrário, é a lógica da “desaceleração”, de acumular as águas pluviais em um solo permeável, nas estruturas da vegetação, nas curvas e várzeas dos rios, lagoas e lagos. O sistema, em conjunto, funciona como uma grande “esponja” que libera mais lentamente o excedente hídrico nos canais naturais de drenagem, retardando os picos de cheia. 

Outro profissional notável que contribuiu muito para os espaços públicos e políticas ambientais curitibanas é o paisagista Hitoshi Nakamura. Uma das frases que melhor traduzem a sua abordagem é que, ao se intervir em um espaço, é necessário “pedir licença à natureza”. Ou seja, a antítese de se “tratorar” uma geografia existente. A premissa seria a da sensibilidade e pertinência na intervenção, colocando-a, o máximo possível, em sintonia com os atributos naturais.

O debate contemporâneo traduz, evidencia e amplia, com outros nomes, os paradigmas aqui ilustrados. Permeiam o debate de forma relevante os conceitos de “soluções baseadas na natureza”, “cidades esponjas” e “jardins de chuva”. Grandes escritórios e importantes pensadores do meio urbano têm avançado nas premissas de “cidades para a vida” e “design centrado na humanidade” ressaltando, face ao imponderável contexto climático que nos encontramos e suas consequências, a necessidade de se alargarem as considerações entre a cidade, as demais formas de vida e os sistemas naturais.

A Cidade Integrativa que propomos para reflexão participa desse debate, no entendimento que os seres humanos são parte da natureza, e que os espaços urbanos se inserem na geografia de um lugar cujas lógicas e estruturas o antecedem. A base, não por acaso, é base. A capacidade de intervenção e de adaptação ao meio da nossa espécie é um de seus atributos mais notáveis. Cabe lembrar, contudo, que conquanto possamos muito, não podemos tudo, e que as forças da natureza têm seus próprios regimes.

Ariadne dos Santos Daher

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Com base na experiência de Jaime Lerner e das equipes que com ele trabalharam, o Instituto Jaime Lerner almeja despertar uma consciência positiva sobre o potencial transformador das cidades e seu desenvolvimento sustentável, inclusivo e criativo. ([email protected])
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