Sou um grande crítico dos planos diretores municipais.
Antes de ser um crítico dos planos diretores, sou crítico à Constituição e ao Estatuto das Cidades, que — em minha opinião — conseguem diluir um assunto de grande profundidade técnica e alta complexidade em conceitos bastante abstratos, manipuláveis e nada objetivos.
A Constituição Federal de 1988 trouxe, no artigo 182, o conceito do direito urbanístico e sua obrigatoriedade para municípios acima de 20 mil habitantes. Daí para o Estatuto das Cidades (2001) e seus mecanismos, foi um pulo.
Começo “dando um spoiler”: as cidades eram melhores antes.
Nem todas as cidades eram melhores antes, claro, mas as mais importantes cidades sim, e já contavam com rede de água, saneamento universalizado, metrô em larga escala e com grande capilaridade trabalhando junto com ônibus, bondes e trens de subúrbio, boa densidade, parques, praças e áreas de lazer, museus, centros culturais, teatros e óperas, casas de show, cinemas, postos policiais, escolas, bombeiros e postos de saúde bem distribuídos, setor hospitalar, centro institucional, portos e aeroportos.
E já tinham vitalidade, andabilidade, passeios padronizados, fachadas ativas, preocupação com a performance dos edifícios, com a segurança, sistemas de incêndio.
Tinham tudo isso desde a segunda metade do século 20, ao longo do qual incrementaram tudo isso, melhorando ainda mais a mobilidade, o acesso à educação, saúde, lazer, cultura, aos serviços gerais e à segurança. E fizeram sem perder a vitalidade e sem nenhum “trade-off” (quando você abre mão de algo valioso em favor de algum outro ganho).
Estamos, claro, falando das cidades do primeiro mundo, a maior parte de nações europeias, mas não apenas. Muitas são japonesas, algumas norte-americanas, pouquíssimas latino americanas e, para surpresa de ninguém, nenhuma brasileira.
A explicação é até prosaica, mas com repercussões seríssimas: o desprezo histórico pelo saneamento básico, o — igualmente histórico — desprezo por redes de metrô (e de metrô subterrâneo, sobretudo), somado a um fenômeno, talvez cultural, o desprezo pela história e pelas tradições, secundado por um deslumbre pela novidade, qualquer novidade (sobretudo as ruins, barulhentas e brilhantes).
Nem todos sabem, mas Belo Horizonte já teve uma rede de bondes que, no seu auge, em 1940, contava com mais de 73 quilômetros de trilhos, cobrindo a maior parte da cidade. Alcançava a recém inaugurada Pampulha: um sucesso de público e crítica.
Mas os investimentos e a manutenção foram escasseando e, em 1960, o descaso e o desinteresse cobraram seu preço e tornaram a operação anacrônica, facilitando o trabalho de seus detratores “desenvolvimentistas”.
Se nas cidades europeias as antigas redes de bondes evoluíram para redes de VLT (veículos leves sobre trilhos), as de Belo Horizonte foram total e completamente obliteradas, cedendo lugar a muito asfalto, viadutos e trincheiras, muito carro e muito, muito ônibus. Quase quatro décadas depois, Belo Horizonte conta com apenas uma linha de trem de superfície (aproveitando trilhos existentes, compartilhados com redes ferroviárias), carinhosamente apelidada de “metrô”. Parece piada pronta, mas é mesmo um retrato acabado do atraso.
Além do desprezo pelos trilhos, Belo Horizonte também não era afeita ao saneamento básico universalizado, e na década de 1970 algumas regiões já tinham coleta, outras ainda não (e quase nada era tratado). Também tinha problemas de abastecimento e, neste contexto, não surpreende o desinteresse pelo metrô.
Por outro lado, as zonas centrais eram bem equipadas e tinham densidade, fachada ativa, residências, escritórios, consultórios, equipamentos de arte e cultura e muita, muita vitalidade. A cidade era acessível, caminhável e agradável, com suas alamedas, praças e um comércio amplo e, ao mesmo tempo, diversificado. As zonas centrais da cidade, repletas de pessoas transitando o tempo todo eram, além de charmosas, seguras.
O mesmo não acontecia com os bairros mais novos, abertos nas décadas de 1950, 60 e 70: criados sob influência de Brasília e da Ville Radieuse, e nasciam impregnados de restrições aos prédios de uso misto, alta densidade, unidades pequenas, áreas públicas de lazer e equipamentos de arte e cultura.
Eram essencialmente residenciais, com permissões tímidas para uso não residencial ou misto. Em alguns dos novos bairros, apenas uma unidade por lote.
O ano de 1976 marca uma virada urbanística, e a Lei 2.662/76 abraça em definitivo a visão de Le Corbusier para as cidades “do futuro” do — falido — projeto de Ville Radieuse, impondo fortes limitações à área construída e exigindo afastamentos frontais, laterais e de fundos em todas as edificações.
De lá para cá, 47 anos depois, os conceitos permanecem e as restrições, ampliadas e potencializadas, produzindo efeitos como degradação das zonas centrais, desadensamento, insegurança, setorização e restrição de usos, espalhamento da cidade, encarecimento dos terrenos e das unidades produzidas. É a “desvitalização”, palavra inventada, que significa a desidratação da vitalidade urbana, comercial, empresarial e cultural.
Enquanto Belo Horizonte aprovava seu primeiro plano diretor, em 1996 (Lei 7.165/96), Paris, Londres, Amsterdã, Madri e Berlim continuavam a revitalizar zonas degradadas e a incrementar outras zonas, revitalizando e construindo novos prédios institucionais, museus, parques e linhas de metrô.
Não por acaso, colheram os frutos na forma de turismo, inovação, arte e economias vibrantes. Ao mesmo tempo — e na direção oposta — Belo Horizonte dobrava a aposta em Ville Radieuse, abraçando uma visão utópica — mas errada — do que seja saudável para uma cidade.
Escolhendo perseguir objetivos abstratos como “universalização da moradia”, “transporte de qualidade”, “direito” a isso e àquilo, Belo Horizonte permanece no plano abstrato dos desejos sem, contudo, evoluir para planos estratégicos e ações objetivas, renunciando aos métodos, a qualquer avaliação de benefício e, porque não, ao próprio urbanismo.
Londres, por outro lado, possui o London Plan (The London Plan) que, para além de um plano diretor, é um planejamento estratégico denso, bem fundamentado e com uma visão de futuro amparada pelo “o que fazer”, “quando fazer” e “como fazer”. Sob responsabilidade de uma entidade específica denominada Greater London Authority (GLA), a entidade tem caráter exclusivamente técnico e funciona diretamente ligada ao gabinete do prefeito.
Não há “garantias” nem “direitos universais”, mas compromissos, um projeto claro de desenvolvimento sustentável (sustentável em todos os aspectos), de futuro e de vocação.
Num método que respeita a lógica e o conhecimento técnico, o Greater London Authority (GLA) elabora o plano e, somente após, convoca as regionais para apresentação e coleta das demandas locais (acolhidas ou não a partir da visão estratégica, capacidade de implementação e efetividade de uma equipe — exclusivamente — técnica).
Lá, a participação popular compreende a oportunidade de se expressar, participar e contribuir mas, da mesma forma que um líder comunitário não entra na sala de cirurgia para debater a melhor abordagem, não integra a equipe técnica do Greater London Authority (GLA).
A vitalidade e a capacidade de regeneração de Londres nos ensinam, através do London Plan (The London Plan) e Greater London Authority (GLA), que o que é importante nunca vem das restrições, mas das possibilidades, da visão estratégica e da ousadia.
Um órgão de estado (não de governo, nem uma estrutura ad-hoc) dedicado ao urbanismo e desenvolvimento da capital, composto exclusivamente por técnicos das áreas da Arquitetura, Urbanismo, Paisagismo e Engenharia (e com histórico de atuação no mercado) poderia mudar o curso de Belo Horizonte.
Podemos projetar um futuro melhor.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.