MCMV: pelas construtoras, para as construtoras

11 de abril de 2024

Voltaire foi um filósofo iluminista francês fiel à separação entre a igreja e o estado, à luta contra o escravagismo e em favor da liberdade de expressão e das liberdades civis como um todo. Defendia, acima de tudo, o primado da razão.

Morreu pouco antes da Revolução Francesa, o que lhe poupou a decepção de ver os ideais iluministas sequestrados pelo terror anti-iluminista e a consagração de um Imperador na França. Para a sorte da civilização ocidental, o iluminismo encontrou um solo mais fértil na América e na Inglaterra, e prosperou a ponto de resgatar a Revolução Francesa, ao menos nos livros de história e nas salas de aula.

Para Voltaire, “um homem deve ser julgado mais pelas suas perguntas do que por suas respostas”, visão que inspira Peter Drucker, 2 séculos mais tarde, quando diz que “o trabalho mais importante e mais difícil não é encontrar a resposta correta, mas fazer a pergunta certa”.

As boas perguntas são como anamneses bem feitas, diagnósticos precisos, a correta interpretação de um texto, a compreensão de poemas, (para além do olhar) a observação de obras de arte e da arquitetura. Em oposição, as mentes mais ideológicas, fechadas e doutrinadas parecem acordar com as respostas sempre prontas, e passam a vida procurando perguntas que se encaixem nas respostas que já têm. 

Isso sequer seria uma questão se as mentes mais ideológicas, fechadas e doutrinadas não estivessem em posição de criar políticas públicas, mas frequentemente estão, e assim foi criado o Minha Casa, Minha Vida (MCMV), um programa criado mirando o óbvio: o déficit habitacional e a falta de acesso.

Mas não é possível mirar apenas na redução do déficit, sem harmonizar a inserção desse novo estoque (de habitações e de população) nas cidades. Como é possível que a “base” do programa seja a criação de bolsões habitacionais desconectados dos centros urbanos, do sistema de transporte de massa e distantes dos empregos (que estão nas… cidades)?

Como explicar o desprezo pelo urbanismo, a ausência de uma centralidade, de áreas de lazer, da institucionalidade e de tudo o mais que fazem de um ajuntamento de casas e pessoas, uma cidade?

Onde ficaram o pertencimento, os vínculos, a dignidade e a possibilidade de integração, de criação de empregos próximos? 

Como acreditar que os habitantes desses distantes conjuntos não se tornem, automaticamente, cidadãos de segunda classe?

Como acreditar que esses bolsões não se transformem, inexorável e rapidamente, em favelas e locais de altíssima criminalidade?

Sim, o MCMV mirou num problema real, mas foi concebido e modelado a partir de respostas prontas (e as mais fáceis disponíveis), evitando-se as questões fundamentais como, por exemplo, a distância aos empregos, o acesso à educação, à saúde e ao lazer, e o custo secundário de mobilidade e transporte público de massa.

Não por acaso, a cada bolsão implantado, seguem-se investimentos sem fim em transporte público de baixa qualidade, infraestrutura para mobilidade, e problemas cada vez maiores de criminalidade e déficit de educação e saúde. As cidades se fragmentam em bolhas e castas, eliminando qualquer chance de mobilidade social. 

Tem como ser pior? Tem, já que o MCMV só pensa em famílias, jamais em indivíduos. Mas, ao pensar em indivíduos, é possível que haja uma abordagem para mitigação de parte do déficit futuro, viabilizando que jovens inseridos no mercado de trabalho possam adquirir imóveis não de 41,5 m², mas de 20,0 m² nas zonas centrais, antes que constituam família, antes ainda dos 30 anos de idade, criando uma base patrimonial e uma poupança interna sólida.

Atualmente, a faixa 1 do MCMV possibilita imóveis com valor de até 170 mil reais, através de um subsídio de 55 mil reais e renda de 2,6 mil reais, mas exigindo uma área mínima de 41,5 m². Com pequenos ajustes (como a redução da área mínima), as zonas centrais de nossas metrópoles podem oferecer milhares de moradias para os jovens.

A questão do déficit habitacional não é única, e engloba realidades muito distintas. Ainda assim, é tratada com uma abordagem genérica, turvando a compreensão em profundidade e se propondo a dar igual tratamento em situações e necessidades muito diferentes.

Miopia, preguiça, doutrinação e inversão de prioridades, com um plano talhado ao gosto da classe política e das construtoras, mas não de seus clientes, nem das nossas cidades.

Um homem deve ser julgado mais pelas suas perguntas do que por suas respostas”. Duzentos e cinquenta anos depois, Voltaire continua tendo razão, mesmo quando ignorado.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

Compartilhar:

VER MAIS COLUNAS