Habitação multifamiliar

5 de julho de 2024

… e o que só ela pode fazer por você.

Meu vizinho de cima tem dois meninos pequenos, talvez 3 e 5 anos, que com certeza pesam o mesmo que um lutador de sumô, pelo tanto que fazem vibrar a laje, as esquadrias e o nosso lustre da mesa de jantar quando pulam e correm. Mas um deles tem asma, e eu, sem saber disso, fui usar spray na minha área de serviço, o cheiro subiu para o apartamento e fez o menininho se sentir mal. Fiquei arrasada. Nunca mais usei produtos de cheiro forte, e os meninos… bem, um dia vão crescer.

No grupo de whatsapp do meu prédio, uma vizinha reclamou do cheiro que estava entrando pela fresta da porta da sua sala, pois tinha alguém que vivia fumando na escada. Pediu providências à síndica. A síndica respondeu que o fumante era seu próprio marido, que ela tinha dito para não fumar mais dentro de casa. “Essa praga de cigarro!”, ela escreveu.

Na reunião de condomínio, decidiu-se que era mais produtivo perguntar quem ainda não tinha ficado preso no elevador.

Organizaram uma festa infantil embaixo do bloco, que começou num fim de tarde e se estendeu até o meio da noite. Subia o ruído da música, dos pais conversando, mas sobretudo da meninada alegre correndo pra lá e pra cá. Uma vizinha, no grupo de whatsapp, não parava de reclamar, alegando falta de respeito, “onde já se viu”, “no fim de semana se quer tranquilidade” e tal. Soube depois que ela estava passando por um tratamento de câncer, e que estava sofrendo muito aqueles dias.

Um vizinho que estava claramente aprendendo a tocar flauta estava estudando a mesma música há dias. Ficava (o que parecia ser) horas a fio, tentando domar umas notas estridentes, de forma obstinada. Estava chato. Um vizinho espirituoso apenas comentou, no grupo do prédio: “Quem é o flautista de Hamelin?”

Uma moradora do sexto andar estava reclamando dos urubus que ficavam em cima do prédio e a impediam de abrir a janela: o cheiro deles era horrível e ela tinha medo. As duas vizinhas que se inscreveram para falar depois dela na reunião de condomínio, desistiram e passaram a palavra para o próximo. Eu as ouvi cochichando, uma pra outra: “Urubu, fulana! Urubu! E a gente achando que tinha problema…”

Quando o filho mais velho do meu vizinho de porta era pequeno, eles assistiam às videocassetadas do programa do Faustão todo domingo. Da minha sala, escutava as risadas deles. Às vezes eu ligava a televisão para ver também.

Uma vizinha anunciava seus brigadeiros gourmet no whatsapp do prédio, anexando um monte de fotos. Uma pessoa reclamou, dizendo que aquele era um canal para assuntos relacionados a manutenção, segurança e outras coisas que diziam respeito a todos, não para vender produtos, e que era importante a síndica estabelecer as normas de funcionamento do grupo etc., na mesma hora em que a síndica escrevia: “Fulana, quanto estão esses aí com sabor de Ovomaltine?”

Eu tive uma vizinha que jogava baldes e baldes de água para molhar as plantas da fachada. A água escorria pelo vidro das minhas janelas, se elas estivessem fechadas, ou pelo meu apartamento adentro, se elas estivessem abertas. Subi lá várias vezes, pedindo-lhe a gentileza de dar uma descidinha e ver a situação da minha sala. Ela descia, pedia desculpas, fazia promessas que não cumpria. Comemorei quando ela se mudou.

Em meio a 36 apartamentos, distribuídos em 6 andares sobre um retângulo de 800 m² no chão, a gente passa raiva, se estressa, acha graça, fica perplexo com a falta de noção, se sensibiliza, ajuda, ensina, aprende, coloca as coisas em perspectiva, compartilha.

Meu prédio me permite, diariamente, o exercício da urbanidade.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Arquiteta, professora da área de urbanismo da FAU/UnB. Adora levantamento de campo, espaços públicos e ver gente na rua. Mora em Brasília. ([email protected])
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