Governança: De quem? Para quem?

3 de novembro de 2023

Uma reflexão sobre modelos de governança a partir da Operação Urbana de HafenCity na cidade de Hamburgo.

Não é de hoje que colecionamos uma enormidade de evidências, nas mais variadas áreas do conhecimento, onde as questões de governança, ou melhor, da falta dela, resultam em projetos e soluções incríveis que acabam por morrer na praia…ou então, se razoavelmente bem-sucedidas, têm vinculados os seus resultados a modelos de empreendimentos fatalmente engessados, incapazes de absorver necessários ajustes e flexibilizações, muitas vezes demandados pela força do tempo…

Mas por que não conseguimos no Brasil estruturar modelos de empreendimentos ou intervenções cujo sucesso da implementação e gestão dependem de ações de longo prazo?

Muitas são as respostas fáceis recorrentemente elencadas, tentando responder a esta indagação:

1. Bom… o brasileiro tem memória curta! Esquece dos bons exemplos e não aprende com os erros…

2. Nos reconhecemos no efeito Macunaíma…somos preguiçosos e preferimos delegar às responsabilidades ou a culpa pelos insucessos ao poder público da vez, ou ao empreendedor da vez que esteja realizando algo fora do tradicionalmente conhecido e esperado…

3. O brasileiro é imediatista, sobretudo os políticos, que focam em resultados de curto prazo dentro de seus calendários administrativos…

4. O brasileiro, desde os primórdios de sua história, não coleciona práticas de negociação aberta na busca de alinhamentos equilibrados…

5. No jogo do empurra-empurra, ganham sempre os mesmos. Aqueles mais organizados em pautas uníssonas e muito pouco dispostos ao diálogo…

Trazendo esta questão para o campo das boas práticas em cidades contemporâneas, achei interessante resgatar uma experiência que tive a oportunidade de conhecer em 2017 e que a

partir de então venho acompanhando e sempre me surpreendendo positivamente. Trata-se da requalificação urbana de um trecho da cidade de Hamburgo na Alemanha, denominado HafenCity.

Vale contar um pouco desta história para, quem sabe, voltarmos os olhos ao Brasil e tentarmos aproximar bons exemplos e bons resultados da nossa cultura, da nossa estrutura jurídico-urbanística e da nossa disponibilidade de aprimorar estruturas e ações a favor de cidades melhor geridas ao longo do tempo…

Vamos lá:

A partir de uma competição internacional, cujo objeto era o Plano Diretor desta parte da cidade, HafenCity, preparada pela então autoridade de desenvolvimento urbano da região, hoje denominada HafenCity Hamburg GmbH, a proposta da equipe Hamburgplan, com Kees Christiaanse e ASTOC, foi vencedora ao apresentar soluções convincentes pautadas na mescla refinada de diferentes usos, bem como nas diversas referências ao centro da cidade existente, e uma composição de cenários estratégicos a partir de uma estrutura de desenvolvimento BÁSICA e FLEXÍVEL, dedicada ao desenvolvimento urbano de alguns lugares especiais da cidade, bem como de alguns bairros. Com uma ampla gama de tipologias urbanas, o plano diretor propôs o desenvolvimento urbano desta região da cidade através da realização gradual de dez bairros com diferentes personalidades.

Em outras palavras, pode-se dizer que a proposta escolhida, no ano 2000, consistiu em planos e objetivos-chave que definiram metas básicas para o desenvolvimento da HafenCity, visando a criação e gestão de um novo território urbano ao longo do Rio Elba, numa área de intervenção de aproximadamente 157 hectares, cuja premissa fundamental, ditada pela cidade, era ser flexível e atualizável, dando as devidas condições de ser refinado e concretizado no processo de planejamento e desenvolvimento ao longo do tempo.

Deste modo, o plano é composto, por exemplo, de declarações técnicas básicas sobre tráfego, proteção contra inundações ou planejamento de espaços abertos, que estão constantemente sendo revisitados e desenvolvidos. Para o efetivo desenho urbano de cada uma das áreas de intervenção, a seu tempo, estão previstos concursos de desenvolvimento urbano e planejamento paisagístico, concursos de arquitetura para os edifícios e concursos de infraestruturas para pontes, etc.

Outra premissa previamente estabelecida quando do concurso, considerando o relevante passivo ambiental da área e o necessário desafio de lidar com as dificuldades de geração de energia, foi a exigência de soluções estratégicas para a sustentabilidade dos novos edifícios, o mix social, a mobilidade e o mix de usos.

Interessante apontar como prerrogativa de sucesso ser a estrutura gerencial de HafenCity proprietária da área, seja originalmente ou por ela adquirida através de sua estrutura gestora.

São muitos os temas de interesse à investigação neste bom exemplo de regeneração urbana. No entanto, destacando o tema dos modelos de governança bem-sucedidos, destaco a estrutura de governança adotada no caso em questão.

Desde 1997, a HafenCity Hamburg GmbH (até 2004 sob o nome Gesellschaft für Hafen und Standortentwicklung GHS) vem agrupando todas as competências para o desenvolvimento da região como: gerente de desenvolvimento urbano; proprietária das áreas de intervenção, por meio do Fundo Especial da Cidade e do Porto e; construtora das infraestruturas. Desde 2006, considerando o plano diretor aprovado e os planos de ação faseado para requalificação da área, HafenCity também tem o status de uma chamada área reservada, ou seja, todos os planos de desenvolvimento, pertencentes a este perímetro, são discutidos na Comissão de Desenvolvimento Urbano em uma base interpartidária e de uma perspectiva de toda a cidade e são desenvolvidos pelo departamento de Desenvolvimento Urbano e Habitação (BSW). 

Todos os alvarás de construção relativos a este perímetro são também emitidos por esta autoridade ou organização institucional e não, como geralmente acontece, pelo distrito. Para garantir, portanto, a qualidade e a razoabilidade técnica continuada na gestão e desenvolvimento integrado desta área de intervenção, a HafenCity Hamburg GmbH depende de uma composição ampla de profissionais que atuam de forma integrada e que vêm das áreas de engenharia, planeamento urbano, desenvolvimento imobiliário, economia, estudos culturais, ciências humanas e sociais, geografia, arquitetura e arquitetura da paisagem (“Landscape Design). Estes profissionais trabalham em estreita colaboração e tentam usar a abordagem de criação de valor para a cidade do futuro em consonância com o plano diretor eleito para esta região e que em sua origem estabeleceu período de 20 anos aproximadamente entre sua data de início e de conclusão das atividades.

Enfim, as palavras-chave que nos cabem tentar fazer existir em nossos umbigos: flexibilidade, integração, longevidade, respeito longevo a projetos eleitos, rigor técnico…

Será que conseguimos chegar lá?

Saudações Polifônicas!

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Arquiteta e urbanista pela FAUUSP, mestre pela FFLCH (Filosofia, Letras e Ciencias Humanas), membro do Conselho Municipal de Politica Urbana (CMPU) e do Conselho de Proteção da Paisagem Urbana (CPPU). Prêmio Top Imobiliário Estadão — Luis A. Pompeia — Pensador de Cidades — 2023–2025.
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