“Gentileza urbana”? Não, obrigada.

9 de maio de 2025

Discursos e jardins não me enganam

Um trabalho de reestruturação viária que avaliei recentemente denominou como “gentileza urbana” faixas de pedestres, calçadas, rampas, iluminação, lixeiras, sinalização. Comentei que aquilo não era gentileza urbana: era mobiliário urbano e infraestrutura mínima de que um pedestre precisa para utilizar a cidade com dignidade. Ou seja, não era um algo a mais, um mimo: era o básico.

“Eu reestruturei essa via e, como uma gentileza para você, pus postes de luz”? Ora, isso é como dizer: “Você pediu esse prato e, como uma gentileza para você, trouxe talheres”.

A gente não pode dizer que está fazendo uma gentileza urbana ao fazer o básico, sob pena de, daqui a pouco, a gente achar que fazer o básico é fazer um favor. Um espaço público bem estruturado para as pessoas é obrigação do poder público.

Gentileza urbana de verdade está vinculada a ações voluntárias, desprendidas, levadas a cabo por pessoas preocupadas em contribuir para melhorar a cidade. No entanto, onde mais ouço falar de “gentileza urbana” é em propaganda de empreendimentos imobiliários que, muitas vezes, muito pouco ou nada contribuem para o espaço público circundante.

Numa breve pesquisa na Internet, vi que um prédio em Águas Claras-DF criou uma parede cega, mas disse que ela era uma “gentileza urbana”, pois seria um jardim vertical. Uma parede cega, verde ou não, nunca é gentil: é um desserviço para o caminho do pedestre.

Um condomínio (murado, claro) em Araraquara-SP propôs uma praça na frente e a chamou de “gentileza urbana”. Havia quase 100 metros no perímetro do lote com vegetação de sombra, mas a primeira coisa que a empresa responsável fez foi cortar tudo para colocar seus tapumes. Fazer muros e cortar árvores que, ao que parece, poderiam perfeitamente ser incorporadas ao futuro projeto da praça não é nada gentil.

Nesse artigo, ou a partir de 1h e 22min desse vídeo, descrevo as 8 características de um edifício gentil. Elas não têm a ver com gentileza urbana: dizem respeito às fachadas dos prédios e evidenciam como um edifício realmente contribui com o espaço público. O que ocorre com muitos empreendimentos é que fazem projetos que não estão nem aí para a cidade, não contemplam nenhuma daquelas 8 características, e depois vêm, com discursos e jardins, trazer o “conceito” de gentileza urbana.

Eu não sou nada contra a iniciativa privada promover melhorias reais no espaço público. Não me incomodo que ela o faça para valorizar seus imóveis, ou que se autopromova com isso (só me incomodo se ela achar que tem que colocar seu nome em cada banco que ela forneceu: o usuário de um espaço público é um cidadão, não um consumidor). Agora, se as “melhorias” propostas forem inócuas ou apenas artifícios para mascarar a hostilidade das interfaces dos seus empreendimentos, pelo menos tenham a dignidade de não as chamar de gentileza urbana.

Nessa minha breve pesquisa, descobri, encantada, que o Instituto de Arquitetos do Brasil/IAB-MG criou, em 1993, o Prêmio Gentileza Urbana. Segundo o site, ele estimula “iniciativas diversas, tanto de pessoas físicas quanto jurídicas, que contribuem para a melhoria da qualidade de vida urbana. A ideia consiste em premiar e valorizar os pequenos atos, as pequenas atitudes dos cidadãos que colaboram para deixar a vida nas cidades cada dia melhor. Gentileza Urbana são atitudes, gestos, intervenções que propiciem um novo olhar sobre a cidade, promovendo a preservação do seu patrimônio cultural e natural e ampliando o conceito de cidadania”.

É inspirador ver essas 10 ações ganhadoras do prêmio em 2004. Isso sim é gentileza urbana. É essa que a gente quer.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

Compartilhar:

Arquiteta, professora da área de urbanismo da FAU/UnB. Adora levantamento de campo, espaços públicos e ver gente na rua. Mora em Brasília. ([email protected])
VER MAIS COLUNAS