No início deste novembro realizou-se em Barcelona o Smart City Expo World Congress, um dos maiores e mais influentes eventos mundiais em inovação urbana. A programação do evento foi organizada em sete linhas mestras, entre as quais “living and inclusion”, cujo foco principal era aprofundar o entendimento da combinação de fatores que contribuem para que uma cidade seja boa para se viver. Em destaque, a ainda necessária atenção às necessidades básicas da população, como o acesso à moradia e a provisão de infraestruturas ambientais, de educação e saúde de qualidade.
Participamos do painel “Covering the Needs to Make a City Home” com a proposta que a Jaime Lerner Arquitetos elaborou para o município de Santos, para aquela que é a maior área de moradia em palafitas do Brasil, que ora avança em seu projeto piloto. O fio condutor da discussão parafraseia um adágio bastante conhecido na língua inglesa, “to make a house a home” (fazer de uma casa um lar), para enfatizar na discussão quais aspectos transcenderiam a provisão das infraestruturas urbanas (a casa) para fomentar a dimensão do sentimento de pertencimento (o lar).
Esse jogo semântico é um convite a reflexões muito ricas e que podem ser abordadas em diversos aspectos. Não há dúvida que há muito a se avançar na feitura das nossas cidades em lares naquilo que de mais bonito essa palavra significa: a manifestação afetiva e simbólica do nosso lugar no mundo, nosso “porto seguro”, um ninho de aconchego no qual podemos nos sentir confiantes em expressar quem verdadeiramente somos, um espaço de aceitação e autenticidade que nos reflete também em sua forma, cores e gostos. Como transpor atributos que têm em sua essência o véu da intimidade a um viver coletivo representado pela cidade é uma discussão milenar na qual, em muitos momentos, ainda estamos tateando.
Contudo, o que o tema do painel em certa medida pode fazer supor é que as nossas cidades já são “casa”, ou seja, que a provisão do espaço de suporte necessário ao atendimento das exigências básicas da matéria estaria equacionada. Tristemente, ainda não chegamos a isso. Trazendo o olhar mais próximo às nossas cidades, são severos os déficits que persistentemente acumulamos no atendimento das funções essenciais da moradia, do saneamento, entre outros, e que se traduzem em territórios formalmente precários.
Entretanto, reside aqui uma “armadilha conceitual” ancorada no pensamento linear de que “a casa precede o lar”, e que o trabalho de Santos nos ajudou a melhor compreender. Aproximando ainda mais o olhar às pessoas que residem nas palafitas, o que se desvela é o forte sentido de propriedade em relação às moradias (independente de quão precárias nos pareçam) e de pertencimento a esse local no mundo, com seus vínculos familiares, comunitários e profissionais – atributos tanto da casa quanto do lar. Desconsiderar que ambas as dimensões coexistem à sua maneira nesses espaços fisicamente frágeis só aumenta a vulnerabilidade dessas pessoas. Assim, dentre os desafios que a perspectiva das cidades integrativas procura abordar, talvez o de revisitar a dicotomia da casa e do lar seja um dos mais instigantes!
Ariadne dos Santos Daher
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.