Era uma vez

16 de janeiro de 2025

Era uma vez um país de riquíssima cultura milenar. Por mais de 30 séculos, a maior potência mundial. Um país que, cansado de ser invadido e seviciado pelos vizinhos e potências ultramarinas, embarcou numa revolução do proletariado, uma ilusão mal costurada onde todos seriam iguais, teriam oportunidades iguais, dignidade, comida e teto.

Deu errado, claro, e a pretensão de igualdade começou separando o “nós” do “eles”; seguiu exterminando o “eles” até que só sobrasse apenas o “nós”, mas sem comida, sem teto e sem nada. Com a fome, milhões de “nós” também se foram, mas por uma boa causa: em nome da bondade, da igualdade, da dignidade e pela paz mundial.

A resultante foi a previsível: um estado falido, mas dono de quase todas as terras de um país inteiro, fruto da abolição da propriedade privada. Terra boa, terra ruim, terra para explorar, para inundar, para construir estradas, para começar novas cidades, novos bairros, fábricas, tudo. Um buraco assim exige muita ousadia, e uma engenhosa solução foi concebida, partindo do único insumo disponível: o imenso estoque de terra, concedido às províncias.

Na República Popular da China, a terra pertence ao Estado, e pode ser cedida para os coletivos rurais, para as cidades e vilas ou alugada para uso residencial (até 70 anos), comercial (até 40 anos) ou industrial (até 50 anos). Se o Estado quiser de volta, paga-se uma compensação e fim de papo.

Numa solução interessantíssima, as províncias podem fazer uso das terras como melhor lhe aprouver, desde que mantenham a contribuição exigida pelo governo central, fluindo sem interrupção. Sim, um arranjo tão capitalista quanto descentralizado, com autonomia e decisão local.

E para garantir o necessário (já que a venda não é permitida), só mesmo dando um uso rentável às terras, fazendo girar aquela “roda da fortuna” que todo mundo conhece: indústrias e negócios gerando empregos, empregos fomentando a construção de infraestrutura, comércio e moradias, volume de gente que produz, estuda, consome e gera impostos, impostos que são enviados para o governo central.

A parte interessante é que a “roda” só passa a ser a “roda da fortuna” quando a cidade é boa, porque nem as fábricas, nem as empresas, nem os negócios e nem as universidades conseguem atrair colaboradores para lugares um pouco mais remotos (além do litoral e metrópoles consagradas) sem parques, sem lazer, sem beleza, sem cenário, sem boas escolas, cultura e muita infraestrutura.

Essa é a explicação do porquê, a cada semana, novos museus, novos teatros, novos centros de compra, novos parques, muito cenário, novas linhas de trem e metrô e infraestrutura para dar e vender surgem até nas províncias mais distantes da China.

A redução no crescimento chinês, já impossível de ser mascarado (e ignorado), coincide, também, com a escassez de terra disponível e da capacidade de atração de novos migrantes que produzam empregos e impostos em nível compatível com as exigências do governo central, com a equação resultando, cada dia mais, num déficit que já não pode ser ignorado, nem coberto. Embora inteligente, o modelo não se sustenta indefinidamente.

No Brasil, nem o governo, nem os Estados e nem os Municípios têm estoque de terra para ceder ou alugar para criar parques, museus, espaços de lazer e muita infraestrutura, de forma a canalizar vocações e incentivar a migração (e a imigração). Por aqui, a missão é ao mesmo tempo mais fácil e mais difícil.

Mais fácil porque o poder público pode contar com o empreendedorismo, a assunção de risco e os recursos do setor privado. Mais fácil porque basta clareza dos pontos fortes, vocação e facilidades de cada localidade, traduzidos em planos estratégicos de longo prazo. Mais fácil porque o poder público tem a prerrogativa de, em conjunto com o legislativo, criar um arcabouço legal que favoreça a concretização da visão estratégica.

Mas mais difícil porque… ora, porque é o poder público, uma entidade cuja visão de futuro raramente supera 4 anos. Uma entidade disforme e inconstante, dada a arroubos políticos e, não raro, revanchismo político contra os planos da gestão anterior.

Fácil, muito mais fácil que difícil, concordam?

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Arquiteto e Urbanista, sócio da incorporadora CASAMIRADOR e fundador do INSTITUTO CALÇADA. Acredita que as cidades são a coisa mais inteligente que a humanidade já criou. ([email protected])
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