Entre o piolho e o bicho de pé

19 de dezembro de 2024

Em “Tóquio Ano Zero”, David Pearce arrasta o leitor por uma Tóquio devastada no final da Segunda Guerra. As facções disputam os espólios em meio a escombros e mercados negros. Faltam água, comida, edifícios inteiros e empregos. A despeito da sujeira e dos piolhos que infestam tudo (e todos), os policiais continuam com seus ternos, sujos e puídos, num esforço quase vão para manter a ordem e solucionar crimes. Um equilíbrio frágil que desafia a sanidade, a ordem institucional e o foco. 

À medida que a trama se desenrola, o nível de destruição e precariedade vão saltando das páginas e o leitor imergindo numa história ficcional, mas num mundo real, bruto. Atividades corriqueiras são interrompidas enquanto o personagem principal se coça até o desespero, lembrando ao leitor, a todo momento, os piolhos que infestam tudo e todos. É muito difícil manter a atenção, o foco e a sanidade mental enquanto você coça, coça e coça.

Enquanto uma parte da população vaga perdida, à espera de orientação, outra parte aposta no caos instalado e numa “nova ordem”. Uma parte da população, certamente a menor parte, luta diária e incansavelmente para a preservação dos marcos civilizatórios, a reconstrução da cidade, das instituições e da lógica.

É uma obra de ficção, claro, mas o leitor sente a poeira na boca, a sujeira por todo o corpo e os piolhos que não param de coçar. Sente o desespero e a desesperança, enxerga uma cidade em escombros. 

Piolho é ruim, mas na “mitologia mineira”, nada como um bicho de pé te distraindo, coçando, prendendo a atenção, consumindo o tempo ali. Joelho dobrado, pé para cima, coçando, coçando.

Distração dos afazeres, do relógio, das obrigações e responsabilidades. Da responsabilidade de evoluir, de andar para a frente, de se mover em direção ao futuro, de evoluir no caminho da civilização, de olhar para o outro e abraçar o quinhão de compromisso com a comunidade em que estamos inseridos.

Para a sorte de Tóquio e do Japão, o grupo que não se deixou distrair pela dificuldade, pela sujeira e pelos piolhos foi capaz de resgatar a civilidade, os valores e os princípios de uma comunidade.

Mais do que isso, de reconstruir e transformar Tóquio na mais bem sucedida cidade a equilibrar o acesso a moradias, com alta densidade (sem ter a verticalização como única estratégia), um sistema de transporte público de massa com participação privada, civilidade, beleza do cenário, áreas de lazer, enfim, o pacote completo.

O bicho de pé encanta e distrai, mas o piolho obriga a “resolver” e “dar conta” (ou sucumbir ao desespero).

Este texto é curto demais para falar dos programas e das estratégias adotadas, e fico, portanto, em apenas duas, símbolos de uma visão e de uma mentalidade: baixíssima regulamentação e foco, muito foco, tudo embalado pela lógica (que jamais é desafiada) e senso de propósito (para endereçar soluções antes que os problemas se tornem ingovernáveis).

Áreas não edificadas de lotes maiores geram, a partir de uma técnica conhecida como “infill”, novos lotes com área mínima, muitas vezes de 80 m² ou menos, com frentes de 4 metros, dando origem a casas com 2, 3 e até 4 pavimentos, sem qualquer exigência, burocracia, normas suíças e exigências incompatíveis.

Os comércios podem existir sem restrição e em qualquer lugar em que se deseje, em qualquer tamanho, de qualquer forma. O entorno das estações de metrô é, após desapropriado pela prefeitura, concedido à iniciativa privada em troca de investimentos na rede de metrô urbana.

E assim, superada a destruição da guerra, o desabastecimento de água, a sujeira, as dificuldades e os piolhos, Tóquio aprendeu a não ignorar quaisquer boas ideias, a lógica, a simplicidade, as parcerias e o empreendedorismo natural de seus cidadãos.

E foi assim, sem se distrair com o bicho de pé, que Tóquio consegue ter, hoje, uma produção líquida positiva de moradias (mais oferta do que demanda). São nada mais nada menos que 37 milhões de pessoas morando e se movimentando, numa das maiores densidades urbanas do planeta.

Coça, coça, coça.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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