Em BH, só se for a Nouvelle Cuisine

2 de março de 2023

Antes de começar, vou logo avisando: adoro e tenho o maior respeito pela culinária, pela gastronomia, chefs e estudiosos. E gosto tanto que vou usar como trampolim para falar de urbanismo.

A nouvelle cuisine nasceu na França nos idos de 1970, apostando na leveza, delicadeza dos pratos e na ênfase da apresentação. E muita manteiga.

A ideia era uma releitura (ou, para usar um termo da moda, ressignificação) da cozinha tradicional. Prometia mudar o mundo, e cumpriu o que prometeu.

A culinária nunca mais foi a mesma, e o impacto foi tão grande que algo talvez tenha se perdido ali (tanto que, pouco mais de uma década depois, já estávamos noutra, em direção à cozinha molecular). Da cozinha tradicional passamos a uma comida ressignificada e, daí, a azeitonas em pó e manga em forma de espaguete.

Mas o assunto era a nouvelle cuisine, onde parte do show é que as porções sejam pequenas (na verdade, minúsculas e, quanto menores, mais “sofisticado” é), lindamente montadas naqueles pratos enormes. Uma bailarina sozinha num imenso palco, branco, imaculado.

Um prato do tamanho de uma pizza gigante de 24 fatias com um naco de carne (ou ave, ou peixe, ou sorbet de tangerina marroquina) do tamanho de um chaveiro ali no centro, imerso em um molho à base de (muita) manteiga e adornado por micro vegetais. Um banquete para os olhos.

Se eu fui bem sucedido até aqui, você produziu uma imagem mental desse enorme prato branco, cheio de vazios, com alguma coisa muito trabalhada e bem miúda lá no meio.

Talvez seja um salmão, talvez seja sorbet e talvez seja um dos milhares de prédios construídos em Belo Horizonte nos últimos 30 anos, desde que algum de nossos Planos Diretores visionários instituiu os afastamentos frontal, lateral e de fundos (afastamentos são parâmetros urbanísticos que definem o quanto você não pode construir).

Se a ideia original era inibir o adensamento, diminuir o porte dos prédios e a quantidade de apartamentos, funcionou. Se a ideia era encarecer os lotes e as frações ideais dos apartamentos construídos, não apenas funcionou, como funcionou muito bem. Se a ideia era, ainda, espalhar a cidade e encarecer a infraestrutura e sua manutenção, funcionou maravilhosamente bem.

E, por onde quer que se ande, BH está ali, pródiga, a exibir lotes pouco ocupados e prédios com poucos, pouquíssimos apartamentos. O reverso dessa moeda não é outro senão lotes e apartamentos caríssimos e uma infraestrutura que serve muito poucos apartamentos, pouca gente, e numa densidade várias vezes menor do que a de Paris, Amsterdã, Barcelona, Buenos Aires ou Nova Iorque.

Trocando em miúdos: quanto menos o lote é ocupado, menos apartamentos são construídos, menos pessoas moram ali e a infraestrutura construída serve a muito menos pessoas do que poderia; naturalmente, tudo custa mais caro: os apartamentos e a infraestrutura e sua manutenção, por usuário.

A gente pensa que, com o tempo, tudo o que perverte a lógica, ignora o bom senso e despreza o que deu certo no resto do mundo será revisto. 

Quem diz que “quem espera sempre alcança” não conhece Belo Horizonte, cidade que não aprende e não faz conta. Não faz conta de quantas pessoas poderiam morar nas suas áreas centrais, de quanto tempo as pessoas poderiam economizar no transporte diário e do aumento da produtividade municipal, de quantos carros seriam retirados das ruas, de quantos ônibus já não seriam necessários, de qual parcela da população seria atendida pela melhor infraestrutura, disponível e já implantada. 

Não faz conta, enfim, de quantos novos empregos seriam gerados pelos novos comércios e novos serviços que poderiam prosperar numa densidade (bem) mais alta. 

E na culinária, quem diria, a mais “nova onda” são os sabores autênticos, the real deal, as formas tradicionais de preparo, as receitas da vovó, as famílias e os amigos se reunindo descontraidamente em volta do fogão e da mesa.

E no urbanismo? Paris, Amsterdã, Barcelona, Buenos Aires ou Nova Iorque, Ouro Preto, o centro do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Salvador ou de Porto Alegre, com seus prédios no alinhamento do lote, sem afastamentos, colados uns nos outros e abertos para o centro dos quarteirões, com seus comércios variados, livrarias, restaurantes e escritórios no térreo, abertos diretamente para o passeio.

O resultado é aquele que o mundo conhece a 200 ou 300 anos: densidade, vitalidade, segurança, andabilidade e muita infraestrutura para todos, em bairros autônomos (como se fossem, cada um, uma cidade compacta).

A roda — essa linda — continua aí, e continua insuperável; por que não usar?

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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