O fator a-espacial
O lugar é um lixo. Meio caindo aos pedaços, ambientes diminutos, paredes sujas, um pouco sufocante. O banheiro… melhor não falar sobre o banheiro. Mas você vai lá. Mais do que isso: você gosta de ir lá. A música é ótima, as pessoas são divertidas. Se fosse só pela estrutura do local, você provavelmente jamais o frequentaria.
…
Seu local de trabalho é impecável. Temperatura e iluminação adequadas, mobiliário ergonômico. Você tem uma linda vista, pode tomar café expresso à vontade, e o banheiro… uma beleza! No entanto, a chefia tem condutas claramente abusivas, o clima organizacional é péssimo, e você não tem vontade alguma de ir para lá.
…
Houve um tempo em que se acreditava que a arquitetura (em seu sentido amplo) ditava comportamento. Que um determinado desenho de lugar obrigaria as pessoas a, por exemplo, serem boas e não cometerem crimes. No fim do século 19, dentre os pensadores que sugeriram alternativas às aglomerações humanas das cidades da Revolução Industrial, Robert Owen propôs uma “aldeia de harmonia e cooperação” para 1.200 pessoas, tendo suprimido dela “os tribunais e as prisões, porque a nova sociedade não terá necessidade deles”, conforme conta Benévolo, em História da Cidade (1993).
A partir dessa crença, boa coisa não se tornaria, alguém que frequentasse o local do primeiro caso. E uma sede de empresa assim tão excelente, como a do segundo caso, só poderia produzir as melhores relações de trabalho.
Mas aquele tempo passou. A arquitetura não manda na gente, ela não determina o que somos, como somos, o que fazemos, como nos relacionamos. Mas ela tem, sim, uma boa dose de responsabilidade nas facilidades e dificuldades com que nos deparamos no cotidiano, ao usar edifícios e cidades – os lugares das nossas vidas.
Existe uma relação entre espaço e sociedade. Entre o desenho dos lugares e seu uso. Entre a disposição dos móveis na casa e o funcionamento da família. Entre a forma do assentamento humano a sociedade que o produz e utiliza.
Bill Hillier e Julienne Hanson, em A Lógica Social do Espaço (1984), dizem que “a ordem espacial é um dos meios mais evidentes pelos quais reconhecemos a existência de diferenças culturais entre uma formação social e outra, ou seja, diferenças na maneira pela qual membros dessas sociedades vivenciam e reproduzem sua existência social”. Isso explica muita coisa, mas não tudo. Nem sempre a gente consegue entender certos comportamentos das pessoas nos espaços estudando apenas a configuração do lugar.
A gente chega, então, ao fator a-espacial: uma pessoa, uma pandemia, algo intangível como fama ou medo.
Mas esse fator também não explica tudo, e o fato de ele existir não torna a arquitetura desimportante. Ela importa MUITO.
Não é porque a música é boa e as pessoas divertidas que é desnecessário criar melhores condições para o banheiro ou tornar o espaço menos insalubre. O lugar pode continuar sendo meio muquifo e manter sua identidade, mas vai assegurar melhores condições para clientes e funcionários.
Não é porque as relações no local de trabalho são péssimas que uma ótima estrutura física não vai fazer diferença. Uma estrutura precária poderia ser mais uma razão para a insatisfação. E um dia a chefia pode mudar, e passaremos a ter o melhor dos mundos.
Não é porque, lamentavelmente, não conseguimos nos livrar da violência urbana, favorecida pela desigualdade histórica e as injustiças socioespaciais deste país, que não vale a pena desenhar ruas belas, confortáveis e interessantes, com características favoráveis à vitalidade, à cooperação e à vigilância informal, especialmente nos bairros mais precários. Mesmo que não tenhamos garantia de que elas serão 100% seguras, elas serão mais seguras que ruas sem essas características. E a gente vai ganhar um pouco mais de dignidade no cotidiano.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.