“Tecnologia Indígena em Mato Grosso: Habitação”, de José Afonso Botura Portocarrero, publicado em sua segunda edição em 2018, abre de uma forma potente: com um conjunto de reflexões de Paulo Mendes da Rocha (1928–2021). O arquiteto, laureado com o Pritzker em 2006, denunciou a sequência de descasos e desprezos históricos em relação à arquitetura dos povos originários, lembrando que não é mais admissível ignorar saberes fundamentais no ensino e na prática da arquitetura na América.
A obra se estrutura em cinco capítulos. Os dois primeiros oferecem um panorama que combina registros gráficos e relatos etnográficos sobre a habitação dos indígenas. De um lado, Portocarrero reúne uma súmula de desenhos produzidos por arquitetos e pesquisadores que, sobretudo ao longo do século 20, articularam croquis, anotações de campo e análises técnicas para compreender o desenho vernacular de povos originários. De outro, incorpora descrições de viajantes e artistas que traduziram a diversidade dessas arquiteturas. A partir desse conjunto, o autor propõe uma classificação em três tipologias: formas primitivas; formas evoluídas nas próprias culturas; e formas resultantes de influências europeias.
O terceiro capítulo é, talvez, o mais impressionante. A partir de levantamentos de campo e do cruzamento com registros bibliográficos, Portocarrero e sua equipe sistematizam a arquitetura de dez povos do Mato Grosso — Bakairi, Bororo, Irantxe, Kamayurá, Karajá/Javaé, Myky, Paresí, Yawalapiti, Umutina e Xavante. O resultado é uma documentação técnica robusta: plantas, cortes, elevações, modelos tridimensionais, maquetes, croquis e fotografias. Os desenhos elaborados por Rafael Soares Teles e Rodrigo Uebel Stihaienco permitem visualizar tanto os aspectos construtivos quanto a organização das aldeias e sua vida cotidiana.
No quarto capítulo, a discussão se desloca para a etnoarquitetura. Portocarrero defende que é possível reconhecer uma etnia a partir do traço arquitetônico que lhe é peculiar. O quinto e último capítulo apresenta projetos contemporâneos inspirados nas técnicas tradicionais. Ao expor experiências que incorporam métodos indígenas como motor de inovação, o autor demonstra a atualidade desses conhecimentos.
Portocarrero reconhece os limites de seu recorte — afinal, dentre as centenas de povos originários brasileiros, o livro aprofunda-se em dez etnias do Mato Grosso. Ainda assim, a obra é rigorosa tanto na sistematização bibliográfica quanto na análise técnica. Tal como “O jeito Yanomami de pendurar redes”, de Thiago Benucci, também resenhado aqui, o trabalho é um convite à compreensão da arquitetura brasileira em sua amplitude, reconhecendo as contribuições dos indígenas.
Se a crítica de Paulo Mendes da Rocha continua a ressoar, a obra de Portocarrero indica que o caminho da reparação passa por um duplo movimento: rigor técnico e reconhecimento cultural. Ao articular documentação histórica e relevância contemporânea, o autor cumpre essa tarefa com precisão e generosidade.
Num momento em que as novas tecnologias têm feito descobertas reveladoras sobre a história da vida na Amazônia e o manejo seletivo da floresta, ensaios como este são fundamentais para que se possam ter a dimensão e relevância da nossa ancestralidade, repleta de estética, simbologia, coletividade e sustentabilidade.
Heloisa Loureiro Escudeiro
Coordenadora-adjunta do Núcleo Arquitetura e Cidade do Centro de Estudos das Cidades – Laboratório Arq.Futuro do Insper.
Tomas Alvim
Coordenador-Geral do Centro de Estudos das Cidades – Laboratório Arq.Futuro do Insper e cofundador da Coleção BEĨ de Bancos Indígenas do Brasil.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.