O inimigo – há tempos – é outro
Tenho duas conhecidas que são vizinhas num condomínio fechado, no Park Sul, um bairro a 10 km do centro do Plano Piloto. Soube disso quando as encontrei num evento, e aproveitei para perguntar o que elas achavam de viver lá. Ambas amavam. Me contaram empolgadíssimas todas as benesses do local, que é um daqueles clubes de morar. Disseram como haviam criado um grupo de amigas de idade parecida e mesmos interesses, como faziam aula de tênis juntas com um professor que elas contrataram, como os filhos tinham salas de estudo à disposição e como tudo era muito seguro.
Uma delas falou da excelente relação custo/benefício do condomínio: “Pago uns 700 reais e tenho piscina, salão de jogos, sauna, academia, churrasqueira, forno de pizza.” E, para fins de comparação, completou com a frase que fez meu coração parar de bater por um segundo: “Meu pai mora na 308 Sul, paga mais de 1.000 reais de condomínio, e o que é que ele tem? Nada!”
Para quem não conhece Brasília, um esclarecimento: o pai dela não mora apenas numa superquadra. Ele mora NA superquadra, aquela que se costuma chamar de modelo, ao redor da qual a unidade de vizinhança de Lucio Costa se concretizou completamente.
Vamos aos fatos.
A SQS (Superquadra Sul) 308, que está a 4 Km do centro do Plano Piloto, possui em seu interior áreas livres públicas com paisagismo de Burle Marx, incluindo um laguinho com peixinhos, edifícios de pilotis livres e atravessáveis, uma escola pública de ensino infantil e uma de ensino fundamental. Eis alguns destinos disponíveis na vizinhança, com suas distâncias medidas a partir do miolo da quadra: biblioteca pública (150m); comércio local da 308/309 (170m); Igrejinha do Niemeyer (180m); Espaço Cultural Renato Russo (190m); Escola Parque com teatro, pública (200m); comércio local da 107/108 (250m); Clube de Vizinhança (270m); Av. W3 Sul, principal corredor de transporte público da cidade (280m); Hospital dia, público (300m); estação de metrô (480m); Cine Brasília (600m); Aliança Francesa (600m); Cultura Inglesa (780m); Centro de línguas e escola de ensino médio, públicos (860m); Instituto Cervantes (940m); Parque da Cidade (1.300m).
O Park Sul fica às margens da EPIA, uma via expressa. Do seu lado estão: garagens de ônibus, concessionárias, um centro de suprimento dos correios, oficinas mecânicas, condomínios fechados, o shopping Casa Park, um Carrefour, o Parkshopping, uma única escola (privada), algum comércio. Do outro lado estão: a rodoviária interestadual, uma estação de metrô, um Assaí atacadista e uma Leroy Merlin.
Se considerar que morar é muito mais que ter uma casa – é ter a cidade para si, oferecendo-lhe o que você precisa para viver e se desenvolver como cidadão com o menor esforço possível –, minha conhecida não tem nada, e o pai dela tem tudo. E – oh, que incrível! – ele tem tudo morando numa superquadra, um expoente desse modernismo que a gente tanto critica.
Eu conheço de trás pra frente os problemas do modernismo, mas o que se vem fazendo, no Distrito Federal e no resto do país, há tempos, já não é mais modernismo: é algo mais perverso, mais excludente e ainda mais danoso para os espaços públicos da cidade. Dos condomínios fechados de baixa ou alta densidade, passando por bairros sem nenhuma qualidade urbana, a gente não está melhorando em nada. Estamos aumentando o movimento pendular, reforçando a dependência do automóvel privado, fazendo enclaves, matando as ruas, trazendo espaços inseguros e desinteressantes em áreas monofuncionais muito, muito feias.
Por isso, por favor, vamos deixar o modernismo descansar em paz, pois seu tempo já passou. Ele está suficientemente criticado. Sugiro começarmos a criticar de forma consistente o que está vindo depois, porque praticamente tudo o que está vindo depois, sinto informar, é pior.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.