De bombas e tradições

25 de maio de 2023

Mole Antonelliana é a mais tradicional confeitaria de Belo Horizonte, inaugurada em 1976. Seu nome faz homenagem à construção que, por muito tempo, foi a mais alta de Turim, com 167 metros de altura.

Inicialmente projetada por Alessandro Antonelli como o ponto central da comunidade hebraica de Turim, a Mole foi, ainda durante a sua construção, adotada pela prefeitura e dedicada ao Rei Vitor Emanuel II (e a sinagoga transferida para outras paragens).

A despeito das dificuldades para sua conclusão, a homenagem é justa e, assim como a Mole faz parte da história de Turim, a confeitaria faz parte da história de Belo Horizonte.

E da minha, apresentado ainda novo, por meu pai, às bombas de chocolate, avelã e baunilha (a despeito do nome e do fundador, italianos, todas as delícias ali têm inspiração e origem francesa).

Assim como meu pai há 45 anos atrás, apresentei a confeitaria aos meus filhos. Afinal, mais do que açúcar, uma casa como a Mole Antonelliana é história, tradição, cultura, arte e gastronomia ao mesmo tempo.

E fica no Centro da cidade, numa das lojas (ou, para sermos modernos, na fachada ativa) de um edifício de escritórios (onde meu pai trabalhou, na sede de uma — outrora — grande Construtora).

Fica também numa avenida com canteiro central, arborizada, próxima ao Automóvel Clube, à Faculdade de Direito, ao Edifício Solar (talvez o edifício residencial mais bonito do Centro de Belo Horizonte), da arquitetura brutalista dos Bancos Safra e Bamerindus, do Arquivo Mineiro, da Praça da Liberdade.

Local precioso, histórias de uma época em que Belo Horizonte ainda era lembrada como uma cidade moderna, com boa infraestrutura, belos prédios e um centro vibrante.

Era, também, uma época em que Belo Horizonte ainda não tinha seu Plano Diretor e, por isso, ainda não tinha aderido às “modernidades” como recuos frontais e laterais, e as lojas podiam se abrir para os passeios e conversar sem medo com os pedestres.

Não que fossem proibidos jardins frontais, mas como não era obrigado, os prédios que escolhiam o jardim frontal o faziam com vontade, bom gosto e bons projetos, não raro com esculturas e fontes.

Mas tudo isso é passado e, daquela época, foram-se a vitalidade do Centro, a demanda por suas lojas, pelos seus escritórios e seus apartamentos. Sobraram prédios históricos — praticamente demolidos — que funcionam como estacionamento, a confeitaria Mole Antonelliana e a lembrança de um Centro vivo e funcional, valorizado.

Bombas (difícil entender como, por aqui, essa delícia francesa chamada éclair acabou sendo conhecida por bomba, mas é como é) são coisas extremamente delicadas, que não resistem a mais do que uma hora sem resfriamento. Um desafio logístico e, ao mesmo tempo, um exercício de força de vontade.

Não são poucos os desafios de produzir uma bomba que fique na memória de quem a experimenta. Além de conhecimento específico, a atenção é crucial em todos os passos do preparo, e até mesmo pequenos deslizes podem acabar em desastre.

E é com esse grau de preparo técnico, conhecimento, paixão e atenção que as bombas da Mole Antonelliana ainda me levam ao Centro mensalmente, repetindo com meus filhos o ritual que meu pai e nós, seus filhos, tivemos enquanto a Construtora esteve no Centro.

E, a cada vez que vou lá, me pego pensando que, tivessem os nossos gestores municipais o mesmo preparo técnico, conhecimento, paixão e atenção para a cidade que a Mole Antonelliana tem com seus doces e tortas, talvez a cidade estivesse ainda vibrante, viva, limpa e segura.

Talvez seus escritórios, apartamentos e lojas estivessem ocupados, mantendo empregos e oportunidades de moradia à distância de uma caminhada, desobrigando o nosso sistema de transporte público do vexame diário, e de seus usuários à humilhação constante.

Tivessem nossos técnicos e legisladores tido a oportunidade de conhecer uma cidade europeia que fosse, ou ler um livro sequer que, ao contrário de celebrar Brasília, apresentasse uma visão crítica e madura (para além dos arroubos utópicos) do que realmente deu certo, talvez a nossa cidade fosse, hoje, outra.

Por óbvio não tiveram e, acorrentados, jamais puderam sair de seus gabinetes e conhecer o mundo, ou ler um livro.

Fossem os confeiteiros trabalhadores teimosos, com a mania de rasgar receitas bem sucedidas e substituí-las por palpites leigos e por receitas utópicas, tolas e jamais testadas, não seria possível manter a tradição da visita mensal à Mole Antonelliana. Meus filhos jamais teriam podido se deliciar com suas delicadas bombas e tortas.

Uma tradição teria se perdido, assim como a história, a cultura, a arte e, mais importante, uma forma de pensar e um jeito de fazer onde a tradição, o aprendizado acumulado e as experiências comprovadas garantem que, mesmo que os confeiteiros não sejam os mesmos nos últimos 47 anos, tudo o que saia daquela cozinha ainda hoje mantém o sabor e a qualidade originais.

Se isso não é o registro acabado da inteligência, gestão e engenhosidade humana, nada mais é.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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