Copresença

12 de maio de 2023

Reconhecer que um espaço público sem gente é um problema já é meio caminho andado.

A arquitetura pode ser avaliada como boa ou ruim, de acordo com ela ter ou não atendido às expectativas relacionadas aos seus diferentes aspectos de desempenho. Sim, porque a arquitetura tem aspectos (ou dimensões). O arquiteto romano Vitrúvio já tinha dito isso lá no século I a.C., no seu livro De Architectura. Para ele, um edifício deveria atender a três deles: utilitas (utilidade), firmitas (solidez ou estabilidade) e venustas (beleza).

Esse ponto de partida foi utilizado por vários teóricos da arquitetura para desenvolver outros modelos, atualizando a lista de aspectos para fazer frente às exigências contemporâneas. Surgem preocupações com questões econômicas, de identidade ou de sustentabilidade, por exemplo.

Vamos pensar num teatro. Todo mundo que o frequenta quer ter uma boa visibilidade do palco, sentar-se com conforto, ouvir perfeitamente o que está sendo apresentado e sair rápida e facilmente, num caso de emergência. Sendo um edifício que abriga uma função especial, seria interessante que fosse belo, memorável. Há expectativas universais quanto ao que seja um bom teatro, em diferentes aspectos — dos funcionais aos estéticos.

E os espaços públicos? Esses lugares que a gente também desenha: uma rua, uma praça, um parque… quais as expectativas com relação ao seu desempenho?

Há algumas universais. Todos queremos que eles sejam bonitos, agradáveis, que seja fácil se orientar neles. Mas há as grupais, também, e diferentes grupos sociais divergem quanto a suas expectativas. Para alguns, os espaços públicos devem funcionar como extensão de sua vida doméstica, para outros, apenas como local de contemplação. Por isso, ao se avaliar um espaço público, é fundamental estabelecer uma visão de mundo para se esclarecer a que expectativa se deseja atender. Então vamos lá!

Todo o campo da pesquisa sobre espaços públicos se baseia na visão que começou a ser oferecida pela minha musa Jane Jacobs, quando do lançamento de seu livro Morte e Vida de Grandes Cidades, em 1961: a de que eles deveriam ter… pessoas! A partir daí, começou-se especificamente a pesquisar sobre uma dimensão até então não evidente ou sistematizada da arquitetura — a que lida com a copresença (denominada Dimensão Sociológica pelo professor Frederico de Holanda, pioneiro nesses estudos, no Brasil).

Copresença significa pessoas compartilhando e usando o mesmo espaço, ao mesmo tempo. Elas não necessariamente se conhecem ou sabiam de antemão da existência uma da outra, mas estão lá. Elas são obrigadas a interagir, ser amigas? Não. Pode-se estar no meio de outras pessoas sem precisar conversar com nenhuma delas.

Naquilo que meus colegas generosos dizem que é o meu mantra (risos), o indicador de um espaço público bem-sucedido é nele haver gente, gente variada e gente, sempre.

Gente, porque, na visão de mundo dos que estudamos espaços públicos, copresença é condição para a urbanidade, e essa é uma qualidade que faz as sociedades avançarem. Porque espaços vivos são mais interessantes, seguros, atraem mais olhares de cuidado e atenção.

Gente variada, porque os lugares da cidade devem abrigar pessoas diversas. Um espaço com muitas pessoas, mas todas pertencentes a um mesmo grupo — seja qual for — não é bem-sucedido, pois pode tornar-se excludente. A variedade de usuários deve refletir a sociedade em que ele se insere.

Gente, sempre, porque uma cidade não se pode dar ao luxo de ter espaços subutilizados, que só são vivos em determinadas horas do dia, ou dias da semana. Um espaço público bem-sucedido é usado o tempo todo (com variações de frequência, claro), para passagem e permanência, ampliando os potenciais benefícios da copresença.

Se um lugar não tem gente, se a gente que nele está não é variada o suficiente (ou se há grupos constrangendo outros grupos e indivíduos), ou se ele só tem gente em determinada hora, temos um problema. Reconhecer esse problema já é meio caminho andado em direção a cidades melhores.

Para conhecer as dimensões da arquitetura, tal como um grupo admirável de professores da Universidade de Brasília vem estruturando desde a década de 80, fica a recomendação das leituras dos meus mestres queridos:

10 mandamentos da arquitetura, Frederico de Holanda, 2015 (2.ª Edição).

Ensaio sobre o desempenho morfológica dos lugares, Maria Elaine e Gunter Kohlsdorf, 2017.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Arquiteta, professora da área de urbanismo da FAU/UnB. Adora levantamento de campo, espaços públicos e ver gente na rua. Mora em Brasília. ([email protected])
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