Como as cidades podem transformar inovação local em impacto global

19 de novembro de 2025

As cidades do Sul global vivem um dilema evidente: de um lado, são atravessadas por discursos que as empurram para uma “corrida da inovação”, alimentando um imaginário no qual só seriam relevantes se exibissem ônibus elétricos, sensores digitais ou centros de inovação reluzentes; de outro, operam em contextos institucionais fragmentados, com baixa coordenação entre atores e pouca capacidade de acumular aprendizado coletivo. 

Nesse contexto, novas tecnologias podem surgir, mas permanecem atreladas às engrenagens que sustentam desigualdade e dependência. O resultado é uma modernização artificial, incapaz de produzir transformações substantivas.

Quando os governos locais conseguem romper essa lógica, o cenário muda. Instrumentos jurídicos, econômicos e operacionais deixam de ser rotinas administrativas e passam a funcionar como plataformas de experimentação. Nesses momentos, as cidades ensaiam o papel de agentes de acoplamento regulatório bottom-up, capazes de conceber arranjos que moldem a forma pela qual as tecnologias serão produzidas no território e vinculadas aos objetivos públicos.

A inovação, por sua vez, não é um produto isolado ou um equipamento urbano, mas a coerência institucional que articula insumos e ações para enfrentar um problema público e gerar mudanças concretas a partir da coordenação entre universidade, governo e empresas. Quando essa coordenação não existe, as “novidades” são apenas peças soltas incapazes de alterar as engrenagens do sistema. 

É aí que a avaliação de políticas públicas informada por evidências se torna crucial. O ponto de partida é o problema: suas causas, as mudanças necessárias e as hipóteses sobre quais instrumentos — jurídicos, econômicos, operacionais — são suficientes para provocá-las. As soluções que emergem desse arranjo devem ser eficientes no uso dos recursos, eficazes em transformar as condições que geram o problema e efetivas em alcançar os objetivos públicos definidos. Só então a inovação deixa de ser retórica e se converte em transformação institucional. 

Esse olhar ilumina o papel das “cidades gateway”, que funcionam como pontes entre o local e o global, usando a inovação como campo de teste para novas formas de governar e resolver problemas públicos. Ao invés de apenas receber fluxos de tecnologia e capital, elas filtram e reorganizam suas estruturas jurídicas e organizacionais para alinhar investimentos aos objetivos, como a descarbonização da mobilidade ou a reindustrialização verde. Os investimentos em infraestrutura deixam de ser pontos de chegada e passam a ser gatilhos para reconfigurar capacidades locais, projetando-as em redes globais de produção e conhecimento. 

Algumas abordagens, como Direito e Desenvolvimento, que examina como marcos jurídicos podem impulsionar ou limitar trajetórias de crescimento, e Redes Globais de Produção, que analisa os fluxos internacionais de capital, tecnologia e conhecimento, oferecem, quando integradas, insights valiosos sobre como as cidades constroem uma orquestração regulatória em transições tecnológicas, conectando seus ecossistemas de inovação a missões globais a partir da relevância dos problemas identificados.

A questão central é a capacidade institucional de articular instrumentos jurídicos, econômicos e operacionais em torno de problemas públicos, mobilizando ecossistemas para gerar transformações efetivas. Só assim as cidades poderão estabelecer conexões entre estratégias locais e missões globais e, consequentemente, fazer com que a inovação deixe de ser adereço e passe a ser caminho de desenvolvimento.

Patrícia Mello é pesquisadora do FGV Cidades, professora da FGV Direito SP, coordenadora-adjunta do programa de mestrado e doutorado acadêmico em Direito e Desenvolvimento e coordenadora do MBA Executivo em PPPs e Concessões Sustentáveis da FGV.

Maurício Serra é pesquisador principal do FGV Cidades e professor livre‐docente do Instituto de Economia da Unicamp (IE/Unicamp). Atua nas áreas de economia regional e urbana, economia da inovação, geografia econômica e sistemas e ecossistemas regionais de inovação.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Fundado em 2023, o FGV Cidades: Centro de Inovação em Políticas Públicas Urbanas conta com uma equipe interdisciplinar de pesquisadores nas áreas de políticas públicas, economia, direito, arquitetura, engenharia e ciência de dados. Sua missão é reduzir as desigualdades de oportunidades espaciais por meio de pesquisas científicas bem como assessorando e capacitando diretamente os entes subnacionais brasileiros para avançarem em tecnologia, regulação e políticas públicas, contribuindo para a construção de cidades mais inclusivas, sustentáveis e prósperas.
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